CMIS – CONFERÊNCIA MUNDIAL DOS INSTITUTOS SECULARES
CONGRESSO E ASSEMBLEIA GERAL
ASSIS – 23-28 de Julho 2012
(Domus Pacis – Santa Maria degli Angeli, Assis – Itália)
À ESCUTA DE DEUS “NOS SULCOS DA HISTÓRIA”:
A SECULARIDADE FALA À CONSAGRAÇÃO
- Mensagem do Santo Padre (Tarcisio Card. Bertone, Secretário de Estado)
- Mensagem do Prefeito (João Braz Cardeal DE AVIZ, Prefeito da CIVCSVA)
- Tema do congresso (Ewa Kusz)
- A consagração de Jesus (Paolo Gamberini SJ)
- No mundo, mas não do mundo. Reflexão sobre a constante tensão do ser cristão (Hanna-Barbara Gerl-Falkovitz)
- Como estar ao serviço da igreja como leigos e enquanto leigos? (Pierre Langeron)
- Um novo modelo de santidade como fidelidade a deus no mundo (Monsenhor Gérald Cyprien Lacroix, Arcebispo do Quebeque,Primaz do Canadá)
- Novas linguagens e uma nova língua para a igreja (Ivan Netto)
- Como muda a vocação quando o mundo e nós mudamos (Piera Grignolo)
- Elementos para uma síntese do congresso (Giorgio Mario Mazzola)
- Estatísticas sobre os institutos seculares
SECRETARIA DE ESTADO
Vaticano, 18.07.2012
+Tarcisio Card. Bertone
Secretário de Estado
Caríssima Senhora,
É-me grato fazer chegar aos membros dos Institutos Seculares a presente Mensagem do Santo Padre, por ocasião do Congresso que se celebra em Assis e que está sendo organizado pela Conferência Mundial dos Institutos Seculares com a finalidade de tratar do tema A escuta da palavra de Deus “nos sulcos da história”: a secularidade fala à congregação.
Esta importante temática enfatiza a vossa identidade como pessoas consagradas que, vivendo no mundo a liberdade interior e a plenitude do amor derivantes dos conselhos evangélicos, se reconhecem como homens e mulheres capazes de um profundo olhar e do bom testemunho inseridos na história. Nosso tempo ascende à vida e à fé, interrogando profundamente e, ao mesmo tempo, manifestando o mistério da nupcialidade de Deus. Na realidade, o Verbo que se fez carne celebra as núpcias de Deus com a humanidade de cada tempo. É o mistério de séculos em séculos escondido na mente do Criador do Universo (cfr. Ef 3,9) e manifestado na Encarnação, projetado para sua realização futura, pois entrelaçado hoje, como força redentora e unificadora.
Inseridos na humanidade a caminho, inspirados pelo Espírito Santo, podereis reconhecer os sinais discretos e, por vezes, escondidos, que revelam a presença de Deus. Somente através da força da graça, que é Dom do Espírito, podereis avistar, nos caminhos muitas vezes tortuosos dos acontecimentos humanos, a orientação para a plenitude da vida em abundância. Um dinamismo que representa, além da aparência, no verdadeiro sentido da história, os desígnios de Deus. A vossa vocação é a de estar no mundo, assumindo todos os cargos, com um olhar humano que coincida sempre com o divino, de onde brota um compromisso original, peculiar, fundamentado na consciência de que Deus escreve sua história de salvação na trama dos acontecimentos de nossa história.
Neste sentido, a vossa identidade reflete também um aspecto de vossa missão na Igreja: ajudá-la a realizar sua presença no mundo, à luz das palavras do Concílio Vaticano II: “Nenhuma ambição terrena empurra a Igreja; ela somente busca isto: continuar, sob a luz do Espírito Consolador, a mesma obra de Cristo, que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, salvar, não condenar, servir, não ser servido (Gaudium et Spes, 3). A teologia da história é parte essencial da nova evangelização, porque os homens de nosso tempo têm necessidade de reencontrar um olhar global sobre o mundo e sobre o tempo, um olhar verdadeiramente livre e pacífico (cfr. Bento XVI, Homilia na Santa Missa para a nova evangelização, 16 de outubro de 2011). O mesmo Concílio nos recorda que a relação entre a Igreja e o mundo há de ser vivida como sinal de reciprocidade, evidenciando que não é só a Igreja se doando ao mundo, contribuindo para fazer mais humana a família dos homens e suas histórias; mas também o mundo se doando à Igreja, de modo tal que ela possa compreendê-lo melhor e viver melhor sua missão (cfr. Gaudium ed Spes, 40-45).
Os trabalhos propostos neste congresso se convergem para o tema específico da consagração secular, na busca de como a secularidade fala à consagração, de como, em vossas vidas, os traços característicos de Jesus, pobre, casto e obediente, adquirem uma típica e permanente “visibilidade” no meio do mundo (cfr. Esort. Ap. Vida Consagrada, 1). Sua Santidade deseja assinalar três âmbitos sobre os quais concentrar a atenção.
Em primeiro lugar, a doação total de vossas vidas como resposta a um encontro pessoal e vital com o amor de Deus. Vós descobristes que Deus é tudo em vossas vidas, decidistes dar tudo a Deus, fazendo-o de modo peculiar: permanecendo leigos entre os leigos, presbíteros entre os presbíteros. Isso exige particular vigilância, porque vossos estilos de vida manifestem a riqueza, a beleza e a radicalidade dos conselhos evangélicos.
Em segundo lugar, a vida espiritual. Ponto firme e irrenunciável, referência segura para nutrir aquele desejo de fazer-se unidade em Cristo, que é força da existência total de todo cristão, sobretudo de quem respondeu a um chamado radical de doação de si. A medida da profundidade da vossa vida espiritual não são as muitas atividades que exigem vossos esforços, mas sim a capacidade de buscar a Deus no coração, mesmo em cada acontecimento, e de reconduzir para Cristo. É o “reunir” em Cristo todas as coisas, como fala São Paulo (cfr. Ef 1,10). Somente em Cristo, Senhor da história, toda a história e todas as histórias encontram sentido e unidade.
Na oração bem como na escuta da Palavra de Deus se alimenta este anseio. Na celebração Eucarística encontrastes a razão de vos fazer pão de Amor repartido para os homens. Na contemplação, no olhar de fé iluminado pela graça, enraíza-se o compromisso de compartilhar com cada homem e com cada mulher as inquietações profundas que neles habitam, para construir esperança e confiança.
Em terceiro lugar, a formação, que não negligencia nenhuma idade estabelecida, porque se trata de viver a própria vida em plenitude, educando-se na sapiência sempre consciente da criatura humana e da grandeza do Criador. Buscai conteúdos e modalidades de uma formação que vos faça leigos e presbíteros capazes de vos interrogar pelas complexidades que o mundo de hoje atravessa e, ainda, capazes de permanecer abertos às inquietações provenientes das relações com os irmãos que encontrais em vossos caminhos, de vos comprometer em discernimento da história e da luz da Palavra de Vida. Sede disponíveis para construir, com todos os que buscam a verdade, projetos de bem comum, sem soluções preconcebidas e sem medo das perguntas que ficam sem respostas, e sempre prestes a colocar em risco a própria vida, com a certeza que o grão de trigo, quando cai na terra, dá muito fruto (cfr. Gv 12,24). Sede criativos, porque o Espírito constrói novidades; alimentai olhares capazes de futuro e raízes sólidas em Cristo Senhor, para poder comunicar também ao nosso tempo a experiência do amor que está na base da vida de todo homem. Abraçai caritativamente as feridas do mundo e da Igreja. Acima de tudo, vivei uma vida coerente e plena, acolhedora e capaz de perdoar, por estar fundada em Jesus Cristo, Palavra definitiva de Amor de Deus pelo homem.
Entretanto o Sumo Pontífice lhe faz chegar estas reflexões, assegurando para o Congresso e Assembleia uma especial recordação na oração, invocando a intercessão da Bem Aventurada Virgem Maria, que viveu no mundo a perfeita consagração a Deus em Cristo. De todo coração ele vos envia, e a todos os participantes, as Bênçãos Apostólicas.
Também me uno pessoalmente a ele, com meus melhores auspícios, e aproveito desta oportunidade para exprimir minha reconhecida estima.
OS INSTITUTOS SECULARES E A COMUNHÃO ECLESIÁSTICA
João Braz Cardeal DE AVIZ
Prefeito da CIVCSVA
Caríssimos e Consagrados Leigos e Leigas e caríssimos sacerdotes dos institutos seculares.
Estou feliz de estar aqui entre vós no início destes dias tão cheios de expectativas; dias durante os quais estarão empenhados, primeiro, no Congresso, um lugar de escuta, de troca de ideias e de elaboração, e, a seguir, na Assembleia. Trata-se de um encontro particularmente importante este ano em que serão aprovados os novos Estatutos. Sobre isso, o meu desejo é que, a experiência de aprofundar o olhar nas normas reguladoras do caminho comum, cujas formas estão elaborando, seja útil para viver em plenitude a comunhão, sem anular as diferenças, mas para caminhar juntos, cada um no seu próprio passo, dentro do mesmo sulco: o sulco da secularidade consagrada. Somente assim, por se tratar (porque certamente se trata) de um percurso complexo, poderão produzir frutos para o bem.
A minha presença é expressão da comunhão que liga a Conferência mundial dos Institutos seculares ao Santo Padre, através da Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica. Trata-se daquele Sentire cum Ecclesia, numero 46 da Exortação Apostólica Vita Consecrata, cujas primeiras palavras releio agora: “Uma grande tarefa é confiada à vida consagrada, também à luz da doutrina sobre a Igreja-comunhão, com tanto vigor proposta pelo Concílio Vaticano II. Pede-se às pessoas consagradas que sejam verdadeiramente conhecedoras de comunhão e que pratiquem a sua espiritualidade, como «testemunhas e artífices daquele “projeto de comunhão” que está no topo da história do homem segundo Deus». O sentido da comunhão eclesial, desenvolvendo-se em espiritualidade de comunhão, promove uma maneira de pensar, falar e agir que faz crescer a igreja em profundidade e em extensão. De fato, a vida de comunhão «torna-se um sinal para o mundo e uma força atrativa que leva a crer em Cristo [...]. De tal forma, a comunhão abre-se à missão, torna-se ela a própria missão», ou melhor, «a comunhão gera comunhão e configura-se essencialmente como comunhão missionária».
Retomo aqui as palavras do Santo Padre Bento XVI dirigidas à Senhora Ewa Kusz, presidente do Conselho executivo, enviadas através do Secretário de Estado +Tarcisio Cardeal Bertone, que acabam de ser lidas:
“Os trabalhos propostos neste congresso se convergem para o tema específico da consagração secular, na busca de como a secularidade fala à consagração, de como, em vossas vidas, os traços característicos de Jesus, pobre, casto e obediente, adquirem uma típica e permanente “visibilidade” no meio do mundo (cfr. Esort. Ap. Vida Consagrada, 1). Sua Santidade deseja assinalar três âmbitos sobre os quais concentrar a atenção.
Em primeiro lugar, a doação total de vossas vidas como resposta a um encontro pessoal e vital com o amor de Deus. Vós descobristes que Deus é tudo em vossas vidas, decidistes dar tudo a Deus, fazendo-o de modo peculiar: permanecendo leigos entre os leigos, presbíteros entre os presbíteros. Isso exige particular vigilância, porque vossos estilos de vida manifestam a riqueza, a beleza e a radicalidade dos conselhos evangélicos.
Em segundo lugar, a vida espiritual. Ponto firme e irrenunciável, referência segura para nutrir aquele desejo de fazer-se unidade em Cristo, que é força da existência total de todo cristão, sobretudo de quem respondeu a um chamado radical de doação de si. A medida da profundidade da vossa vida espiritual não são as muitas atividades que exigem vossos esforços, mas sim a capacidade de buscar a Deus no coração, mesmo em cada acontecimento, e de reconduzir para Cristo. É o “reunir” em Cristo todas as coisas, como fala São Paulo (cfr. Ef 1,10). Somente em Cristo, Senhor da história, toda a história e todas as histórias encontram sentido e unidade.
Na oração, bem como na escuta da Palavra de Deus, se alimenta este anseio. Na celebração Eucarística encontrastes a razão de vos fazer pão de Amor repartido para os homens. Na contemplação, no olhar de fé iluminado pela graça, enraíza-se o compromisso de compartilhar com cada homem e com cada mulher as inquietações profundas que neles habitam, para construir esperança e confiança.
Em terceiro lugar, a formação, que não negligencia nenhuma idade estabelecida, porque se trata de viver a própria vida em plenitude, educando-se na sapiência sempre consciente da criatura humana e da grandeza do Criador. Buscai conteúdos e modalidades de uma formação que vos faça leigos e presbíteros capazes de vos interrogar pelas complexidades que o mundo de hoje atravessa e, ainda, capazes de permanecer abertos às inquietações provenientes das relações com os irmãos que encontrais em vossos caminhos, de vos comprometer em discernimento da história e da luz da Palavra de Vida. Sedes disponíveis para construir, com todos os que buscam a verdade, projetos de bem comum, sem soluções preconcebidas e sem medo das perguntas que ficam sem respostas, e sempre prestes a colocar em risco a própria vida, com a certeza que o grão de trigo, quando cai na terra, dá muito fruto (cfr. Gv 12,24). Sedes criativos, porque o Espírito constrói novidades; alimentai olhares capazes de futuro e raízes sólidas em Cristo Senhor, para poder comunicar também ao nosso tempo a experiência do amor que está na base da vida de todo homem. Abraçai caritativamente as feridas do mundo e da Igreja. Acima de tudo, vivam uma vida coerente e plena, acolhedora e capaz de perdoar, por estar fundada em Jesus Cristo, Palavra definitiva de Amor de Deus pelo homem.” (Secretaria de Estado, Carta de 18.09.2012, n. 201.643).
É justamente na comunhão eclesial que queria me concentrar aqui hoje, não para diminuir a importância à temática específica deste Congresso, sobre a qual terão a ocasião de refletir nestes dias, mas quase para delinear um contexto, traçar como que um horizonte de sentido, no qual possam inserir as vossas reflexões.
A vocação que carregam só tem sentido a partir do vosso enraizamento na Igreja, porque a vossa missão é a missão da Igreja. Na oração sacerdotal, contida no Evangelho de João, a intensidade da relação entre Pai e Filho forma uma unidade com a força da missão de amor. É realizando essa comunhão de amor que a Igreja se torna sinal e instrumento capaz de criar comunhão com Deus e entre os homens. (cf. Lumen Gentium 1).
Por isso, já Paulo VI vos exortava: “Não vos deixeis surpreender, nem tocar pela tentação hoje demasiado fácil, de que seja possível uma autêntica comunhão com Cristo sem uma real harmonia com a comunidade eclesial regida pelos legítimos pastores. Seria enganador e ilusório. O que valeria um indivíduo ou um grupo, mesmo se com as melhores e mais perfeitas intenções, sem esta comunhão? Cristo pediu-a como garantia para nos admitir à comunhão com Ele, da mesma forma que nos pediu que amássemos o próximo, como prova do nosso amor a Ele” (Paulo VI, Alocução ‘Mais uma vez’ aos Superiores dos Institutos Seculares, 20 de Setembro 1972).
E de forma ainda mais comovente Bento XVI repetia: “A Igreja precisa também de vós para completar a sua missão ... Sedes semente de santidade deitados (deitado) de mãos cheias nos sulcos da história”. Não há comunhão que não se abra continuamente para a missão, nem missão que não se origine da comunhão. Os dois aspectos tocam o coração vivo e palpitante de toda a Igreja, permitindo-lhe uma nova leitura da realidade, uma procura de sentido e, até, também de soluções que querem ser uma resposta, certamente parcial, mas de um coração cada vez mais autenticamente evangélico.
Uma outra consideração inspira-me na escolha deste assunto. É a seguinte: uma das primeiras preocupações que me foram apresentadas como Prefeito, nos encontros com os Institutos seculares, foi “dentro da Igreja somos pouco conhecidos ou mal conhecidos”.
O laço profundo que há entre conhecimento e comunhão parece-me fundamental, num duplo sentido. Só através do conhecimento, que significa escuta, atenção, sintonia de coração, pode nascer a comunhão que, por sua vez, gera autêntico conhecimento, mesmo porque vai à raiz do essencial e dilata a capacidade de encontro.
Por esta razão, omitindo agora o pensar sobre a comunhão em cada Instituto (assunto que mereceria uma reflexão separada), concentro-me em alguns pontos referentes à comunhão eclesial. Faço-o partindo daquele Documento que a Sagrada Congregação dos Religiosos e os Institutos Seculares enviou às Conferências Episcopais após a reunião Plenária do mês de Maio de 1983.
Voltando às origens desta vocação pude constatar como, desde o início, confluíram realidades profundamente diferentes entre si na nova forma reconhecida juridicamente pela Constituição Apostólica Provida Mater, sobretudo em razão da diferente finalidade apostólica. Foram mesmo os Congressos organizados pela futura Conferência Mundial dos Institutos seculares que permitiram um conhecimento recíproco – leio no supramencionado documento – que levou os Institutos a aceitar a diversidade (o chamado pluralismo), mas com a necessidade de esclarecer os limites desta mesma diversidade (Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares, Os Institutos seculares: a sua identidade e a sua missão, 3-6 de maio 1983 n.4)
Este me parece um ponto fundamental. Penso que esta obra de acolhimento recíproco esteja ainda em processo e não se pode perder de vista a importância de manter viva a tensão e de aprofundar essa etapa. Igualmente, prossegue também o caminho de compreensão, como acabamos de ouvir no documento, dos limites dessa diversidade. Limites ou fronteiras, que têm raízes tanto na essência do Espírito, que sempre renova a terra com novas ofertas, como no tempo que a Igreja está vivendo. O atual é um contexto em que, - também na perspectiva do Ano da Fé estabelecido por Bento XVI, para celebrar os 50 anos do Concílio Vaticano II, - todo o povo de Deus, consagrados, presbíteros, mas também pastoralistas, canonistas, todos são chamados a colaborar para construir juntos novos caminhos de evangelização e de acompanhamento do homem do nosso tempo.
Compreendam bem que um tal discernimento exige uma atitude fundamental: a de não ter a pretensão de conhecer a verdadeira (e, portanto única) identidade de um Instituto secular. Pelo contrário, é necessário uma disponibilidade de fundo que permita descobrir como o outro declina, na sua própria espiritualidade e com a sua missão e modalidade de vida, a síntese entre consagração e secularidade; de que maneira seria possível manifestar, embora de maneira diferente, a originalidade e a unicidade da vocação nos diferentes âmbitos sociais, culturais e eclesiásticos.
Só através dessa dinâmica de diálogo e de acolhimento, que exige um arguto discernimento, tornar-se-ão todos mais edificados, porque poderão experimentar a grandeza de Deus que, para manifestar o seu grande amor pelo mundo, não se deixa fechar nos nossos estreitos entendimentos, mas sabe suscitar respostas que podem nos parecer extravagantes, mas que, certamente, são significativas e dão sentido à vida de cada um. Portanto, a partir do que vos une, poderão se confrontar não só nas diversidades, mas também nos desafios sempre novos que o mundo apresenta especialmente àqueles como vós, chamados a passar a vida numa “terra de fronteira”. Diante de novas problemáticas, pessoas como vós são solicitadas a procurar novos percursos que exprimam a atualidade da vossa missão, sempre prontos a pô-los novamente em discussão, confrontando-os quando os tempos e os lugares exijam novas elaborações.
Penso em uma das perguntas que me foram dirigidas durante o meu encontro com a Conferência Polaca dos Institutos Seculares que se realizou no mês de Novembro de 2011. Pediram-me uma reflexão acerca da necessidade de que os membros de um instituto secular mantenham a discrição sobre a sua vocação. Mais do que uma resposta, surgiu um convite a cada um dos Institutos para se confrontar, em seus próprios limites (dentro dos próprios institutos e também entre eles), sobre as motivações de tal discrição, questionando: “Porque se sente essa necessidade? O que quer dizer para a Igreja e para o Mundo?”. As respostas podem ser diferentes para cada instituto, para cada nação e para cada época histórica, mas, para verificar a atualidade e a eficácia de um instrumento, é necessário partir sempre do fundamento, do valor que se deseja realizar e exprimir.
Acredito que este seja um método possível para ativar aquele conhecimento que pode levar à comunhão e que deriva da comunhão.
Portanto, escutar-se reciprocamente, sem pré-compreensões, quer no interior de cada instituto, quer nos lugares apropriados de confrontação, para atingir um destino que, como sabem muito bem, é só uma etapa no caminho do Espírito!
Saibam que nesta obra não estão sozinhos: a Igreja, através das palavras dos Pontífices e do serviço da Congregação que represento, vos acompanha.
E aqui proponho um outro aspecto que é o de uma comunhão com a Igreja local. Aqui também recordo as palavras do Beato João Paulo II na conclusão da Plenária supramencionada: “Se houver um desenvolvimento e um reforço dos Institutos Seculares, também as Igrejas locais tirarão vantagem disso”.
Segue um duplo convite dirigido aos Institutos e aos Pastores: mesmo no respeito das suas características, os Institutos Seculares devem compreender e assumir as urgências pastorais das Igrejas particulares, e concitar os seus membros a viver com atenta participação as esperanças e as fadigas, os projetos e as inquietudes, as riquezas espirituais e os limites, numa palavra: a comunhão da sua Igreja concreta.
E mais, deve ser uma solicitude dos Pastores reconhecer e exigir a sua contribuição segundo a sua própria natureza. Em particular, cabe aos Pastores uma outra responsabilidade: a de oferecer aos Institutos Seculares toda a riqueza doutrinal de que precisam. Eles querem fazer parte do mundo e nobilitar as realidades temporais, arrumando-as e elevando-as para que tudo tenda a Cristo, como a um chefe (cfr. Ef l, l0). Portanto, que se dê a estes Institutos toda a riqueza da doutrina católica sobre a criação, a encarnação e a redenção, para que possam tornar próprios os desígnios sábios e misteriosos de Deus sobre o homem, a história e o mundo.
Hoje a pergunta de averiguação é imprescindível: em que ponto está esse percurso?
Naturalmente, neste lugar dirijo-me a vós, solicitando uma reflexão sobre o caminho que realizaram. Mas é uma pergunta dirigida também aos Pastores, convidados a favorecer, entre os fieis, uma compreensão não aproximativa ou acomodatícia, mas exata e respeitosa das características qualificadoras desta difícil, mas bela vocação. (trata-se sempre de palavras do Beato João Paulo II durante a Plenária)
A comunhão da qual falamos, é preciso nunca esquecer, é uma dádiva do Espírito Santo, cria unidade no amor e na recíproca aceitação das diversidades. Antes de traduções concretas a em nível comunicativo e estrutural, ela exige um caminho espiritual sem o qual – reiterava claramente o Beato João Paulo II – não podemos nos iludir, pouco valeriam os instrumentos exteriores da comunhão. Tornar-se-iam aparatos sem alma, máscaras de comunhão mais do que seus caminhos de expressão e crescimento. (Novo milênio ineunte, n. 43).
Cada um entre os presentes deve se sentir interpelado, como indivíduo, como Instituto e como Conferência, para identificar instrumentos e modalidades para que o ideal de uma plena comunhão eclesial, exposta em muitos documentos da Igreja, se torne comunhão real dentro da história.
Aqui também é prioritária uma atitude de fundo: nunca cedam à tentação da renúncia. Às vezes pode acontecer que as tentativas não deem frutos e o caminho não avance: também neste caso, não abandonem o destino! Não parem perante os insucessos, mas destes tirem nova força para ativar a criatividade; saibam passar do ressentimento à disponibilidade, da desconfiança ao acolhimento. Tragam as feridas à comunhão eclesial na oração, leiam com verdade as vossas responsabilidades, não deixem nada intentado e, no discernimento, retomem o árduo caminho para a comunhão.
No mês de Março deste ano, tivemos um encontro na Congregação entre os Superiores e o Conselho da CMIS, durante o qual o Conselho apresentou alguns assuntos para serem abordados juntos, relativos às três temáticas, assim subdivididas: O conhecimento recíproco; os critérios de discernimento da identidade dos Institutos seculares; o papel da CMIS.
Como Ministério, acolhemos com muito prazer a proposta, indicando uma possível modalidade de atuação: que esta Assembleia identifique o primeiro aspecto no qual concentrar uma reflexão comum; que indique os interlocutores com o Ministério e, sobretudo, que estabeleça a modalidade com a qual todos os Institutos possam participar da reflexão. Um exemplo de comunhão eclesial que estamos construindo!
Enfim, dirijo a todos um último convite: sejam promovedores de comunhão com as outras expressões de vida consagrada e as outras realidades eclesiais que partilham convosco alguns aspectos da vossa identidade ou missão. Penso nas outras formas de vida consagrada que partilham convosco a consagração para a profissão dos conselhos evangélicos no sentido canônico. Penso naquelas associações e nos movimentos que, como vós, têm uma presença evangélica no mundo, mesmo conservando uma missão e um estilo de vida profundamente diferentes. Esta proposta poderia parecer ousada, mas é sugerida pela vossa mesma vocação que vos leva a experimentar já dentro dos Institutos a riqueza da diversidade, e que torna o vosso viver um laboratório de dialogo.
Tenham disposição para conhecer estas realidades e, sobretudo, para vos deixar conhecer por elas: não se devem proteger de nada, têm só que mostrar a beleza da vossa vocação que, junto com as de muitos outros irmãos e irmãs, é expressão da riqueza e da vivacidade do Amor trinitário. Aquele Amor surpreendente e criativo, que supera a nossa capacidade de imaginação, e que torna a Igreja um magnífico jardim onde a multidão de flores e plantas permite a todos os homens encontrar e experimentar, na variedade dos odores e das cores, a profundidade e a alegria de uma vida cheia e boa.
N.B.: Agradeço a colaboração da Doutora Daniela Leggio, oficial da CICSVA para a pesquisa elaborada acerca dos documentos sobre os Institutos seculares.
TEMA DO CONGRESSO
Ewa Kusz
Vindes de diversos países, e também de diferentes situações culturais, políticas e religiosas nas quais viveis, trabalhais e a vossa idade avança. Em todas estas situações, sejais Pesquisadores da Verdade, da revelação humana de Deus na vida. Trata-se, como bem sabemos, de um longo caminho, cujo presente é atormentado, mas cujo fim é certo. Proclamem a beleza de Deus e da sua criação. Seguindo o exemplo de Cristo, sejam obedientes ao amor, sejam homens e mulheres meigos e misericordiosos, capazes de percorrer as estradas do mundo fazendo só o bem. Que as vossas vidas coloquem as Beatitudes ao centro, contradizendo a lógica humana, para exprimir uma confiança incondicionada em Deus, que deseja a felicidade do homem. A Igreja também necessita de vós para que a sua missão seja completa. Sejam sementes de santidade, lançadas a plenas mãos nos sulcos da história. Enraizados na ação gratuita e eficaz com a qual o Espírito do Senhor guia os acontecimentos humanos, possais vós dar frutos de fé autêntica, escrevendo com a vossa vida e com o vosso testemunhos parábolas de esperança, escrevendo-as com as obras sugeridas pela „imaginação da caridade” (João Paulo II, Carta Apostólica Nuovo millenio ineunte, no 50) .
Citei estas palavras de Bento XVI, de 2007, porque elas foram fonte de inspiração para o tema do Congresso, que começamos. Ei-las: A escuta de Deus „nos sulcos da história”: a secularidade fala à consagração.
A minha introdução ao Congresso e à sua temática, será dividida em duas partes. Em primeiro lugar, vou apresentar – recordar a alguns – as estatísticas que concernem os Institutos seculares. Vou fazer referência a um estudo preparado pela Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica na revista „Sequela Christi” de 2011. Num segundo tempo, tentarei introduzir-vos à temática do Congresso que acabo de citar.
1. [ESTATÍSTICAS]
2. Introdução à temática do Congresso
Comecemos por analisar o contexto eclesial no qual se desenrola este IXº Congresso Internacional dos Institutos Seculares e a Assembleia geral que o segue. Dentro em breve, de 7 a 28 de outubro de 2012, terá lugar a XIIIª Assembleia geral ordinária do Sínodo dos bispos, consagrada à „nova evangelização para a transmissão da fé cristã”. Durante esse Sínodo, a 11 de outubro, começará o Ano da Fé, anunciado pelo Papa Bento XVI para a comemoração do 50º aniversário da abertura do Conselho Ecuménico Vaticano II e o 20o aniversário da publicação do Catecismo da Igreja Católica. A temática do nosso Congresso inscreve-se nestes acontecimentos que põem em relevo o primado da fé na vida de cada cristão, o primado vivido e realizado nos lugares de vida e de trabalho. Isto convida-nos a refletir sobre a questão concernente o estado da nossa fé, sobre como ser testemunha, no mundo atual, do Evangelho, e pôr-se à escuta, com atenção e preocupação, e também com uma certa fascinação, de tudo o que Deus nos diz através deste mundo „atual”. É Assis que nos convida também a uma tal reflexão no clima da preocupação para com a fé e para com a abertura ao mundo criado e resgatado pelo Amor. Assis – é aqui que São Francisco nasceu e onde ele espera pela ressureição – não cessa de trazer o sopro fresco do Evangelho para a Igreja e para a sociedade.
O Primado da fé
Devemos colocar-nos a questão: porque estamos no mundo? Porque é que este é um elemento essencial da nossa vocação? Formulamos esta questão, não porque existindo nesta terra não tenhamos outra saída, mas sim porque o mundo e o facto de estar no mundo contituem um valor e uma tarefa. O Papa Bento XVI no Motu Proprio Porta fidei (6) aponta, entre outras, a seguinte tarefa do cristão: „ de facto os cristãos são chamados, com a sua própria vida, a fazer resplandecer no mundo a Palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou ”. podemos concluir que não existe outra razão para estar no mundo, no seio do mundo, a não ser empreender sem cessar e cada vez mais plenamente „uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo” (ibid).
Isto aponta novas questões para a nossa reflexão: no contexto do primado da fé, como deve ser, pois, a nossa consagração no seio do mundo?
Reconhecemos que ela deve seguir o exemplo de Cristo, que foi enviado pelo Pai para salvar o mundo (cf. Jo 3, 17). O tema da consagração de Jesus no mundo e para o mundo será debatido na primeira conferência por um teólogo italiano, o prof. Paolo Gamberini SJ.
Tentemos agora refletir sobre um modo concreto de estar no mundo. A nossa reflexão é lançada pela seguinte pergunta:
O mundo cristão ou o cristão no mundo?
A distinção entre a concepção da Igreja que se esforça por construir um mundo cristão e aquela da Igreja que se concentra para que neste mundo estejam presentes cristãos autênticos e santos, não é um jogo de palavras, nem um exercício teórico. A resposta a esta questão: qual destas duas concepções aceitamos como sendo a nossa e com qual nos comprometemos, muda totalmente o modo de existência da Igreja no mundo de hoje e tem consequências importantes para a nossa vocação de leigos consagrados.
Durante mais de dez séculos tentou-se contruir um mundo cristão na Europa. Esse processo iniciou com o édito de Milão, que reconhecia o Cristianismo como religião do Império romano. Essa tendência a unir a religião com o poder, uma espécie de aliança entre o trono e o altar, parecia então muito clara: como, de facto, a salvação é o bem supremo, era necessário fazer todo o possível para que ela fosse acessível a todos. Um certo fruto desse modo de pensar era um princípio que reinou durante séculos em inúmeros países europeus – cuius regio eius religio. Existir externamente à Igreja equivalia a existir externamente à comunidade local; existiram lugares e períodos, em que o poder leigo salvaguardava os princípios pregados pela Igreja e velava para que fossem implementados pelos indivíduos. Por outras palavras, num modo incontestado praticava–se algo que pode ser comparado com o que sucede hoje em numerosos países islâmicos.
O desejo santo de salvação universal, une-se a um desejo menos santo, ou até um postulado, de que as normas e os princípios eclesiais sejam salvaguardados pela lei do Estado, o desejo de construir um mundo cristão está sempre presente e não faz parte de uma única cultura, de um único continente nem de um grupo particular na Igreja. Muitas vezes ele permeia também os nossos desejos porque, na sua própria essência, parece justo porque está estreitamente ligado ao desejo de salvação, portanto de um bem supremo, para o próximo, para a sociedade, para a nação… Por conseguinte o objetivo parece confundir-se com o método. Não só queremos forçosamente salvar todo o mundo, mas, além disso, fazêmo-lo numa única maneira, a melhor na nossa opinião. Os desejos de uma pessoa concreta perdem de importância – nós sabemos melhor do que o outro de que é que ele precisa – porque ele está perdido e ignora o que é bom para ele. É necessário não só dizer-lho, mas devemos também organizar a sua vida na sua pátria terrestre, num modo tal que ele não tenha qualquer possibilidade de se perder. Muitas vezes adotamos a atitude de um pai em relação a uma criancinha, ou de um tutor de uma pessoa com uma consciência limitada, esquecendo-nos que temos perante nós uma pessoa adulta, consciente de si própria. Uma pessoa que tem o seu próprio tempo e o seu próprio processo de amadurecimento, por vezes bem diferente do nosso. No seu amor paciente, Deus espera, e nós? Por vezes tentamos também exigir, no seio da comunidade da Igreja, um conjunto de práticas religiosas, uma formação estabelecida de maneira demasiado rígida, etc. nos nossos Institutos. Pode ser também uma lista de comportamentos, de princípios morais e sociais „que são os únicos justos ” e que devem ser obrigatórios para todo o mundo, independentemente do facto de os outros se declararem crentes ou não, e que tentamos exigir (verbalmente ou não) nos nossos contextos de trabalho ou no nosso ambiente.
A concepção do mundo cristão, assim concebida e realizada, perde a pessoa, a sua liberdade e a sua relação pessoal com Deus. A pertença a um grupo cristão e mesmo a um instituto secular, a observação das regras, o recitar de numerosas orações não faz de ninguém um cristão, torna-o somente membro de um grupo social que tem princípios, normas, práticas e estrutura determinadas.
O que faz com que sejamos, ou nos tornemos cristãos, é a existência de um laço real com Cristo, um laço assumido e aprofundado cada novo dia. É esse laço que constrói a identidade cristã e que, por sua vez, suscita atitudes cristãs concretas, as quais têm um denominador comum – a realização do mandamento da caridade. O objetivo não é, portanto, envidar esforços para que a lei, ao meu redor, em todas as suas manifestações seja „cristã”, que me ajude a mim próprio e aos outros a observar os valores evangélicos. O que conta, é que nós, como crentes, e ainda mais nós, em quanto membros de Institutos seculares, sejamos cristãos. É cristão quem observa os princípios resultantes do Evangelho, os vive na comunidade e os testemunha na sociedade, porque estes princípios constituem para ele um valor, ele quer de facto imitar Cristo, estar muito próximo d’Ele. É claro que um cristão deseja granjear todos os outros para imitar Cristo, mas ele fá-lo na mesma maneira de Jesus: „se tu quiseres…”, „vem ver…”.
É significativo que Bento XVI, a 28 de agosto de 2011, na sua homilía dirigida aos participantes dum encontro dos seus antigos estudantes, dedicado ao tema da nova evangelização, tenha considerado necessário dar um testemunho claro da sua fé, um reflexo da fé. E para dar um testemunho da fé, começa-se não pela palavra, pela proclamação, mas pela escuta e pela compreensão da situação do homem no mundo de hoje, da sua linguagem e da sua pesquisa, da sua sede de Deus e da maneira como se exprime essa sede. Não existe escuta sem atenção à pessoa, ao mundo, sem entrar, seguindo o exemplo da Encarnação, neste mundo, para compartilhar com ele tudo o que é humano exceto o pecado, para compartilhar as suas preocupações e as suas esperanças. E isso implica uma tensão. A Senhora professora Hanna Barbara Gerl-Falkovitz vai falar da vocação do cristão no mundo, dessa tensão constante inscrita no facto de se ser cristão(ã).
Se este não é um mundo cristão, como responder aos apelos da nova evangelização? Como levar o Evangelho ao mundo que é o lugar da realização da nossa vocação?
O homem – a estrada da Igreja
A resposta mais simples parece-me a dada pelo bem-aventurado João Paulo II na sua primeira encíclica, Redemptor hominis: o homem é a estrada da Igreja. Também aquele que, como o irmão mais velho da parábola do filho pródigo, fica sempre com o Pai, mas não é capaz de se regozijar com o regresso do seu irmão, que é o mais novo, que partiu à procura dos seus próprios caminhos e que precisava de tempo para regressar (cf. Lc 15, 11-32). Ambos, um e outro, têm necessidade de uma atenção diferente do Pai, de uma abordagem diferente, de uma preocupação diferente, de um acompanhamento diferente. Num mundo cristão tal como tinha sido forjado, o mais novo não teria encontrado o seu próprio lugar. Embora tivesse regressado com as suas próprias forças, tendo pago um preço amargo pelo seu afastamento. Ficaria estigmatizado para sempre por causa da sua história, de ter partido e de se ter afastado. A nossa vocação dirige-nos justamente para pessoas deste tipo, que ficam fora das estruturas da Igreja; aponta-nos os lugares de encontro „no átrio dos gentios”. O Papa Bento XVI lembra-o muitas vezes e o cardeal Gianfranco Ravasi, Presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, promove-o.
Por vezes parece-nos que a Igreja na sua dimensão hierárquica, virada para os movimentos eclesiais ou de novas comunidades em expansão e muito dinâmicas, se esquece dos Institutos seculares, ou então os subestima. Parece–nos que é outra a maneira de evangelizar ou de trilhar os caminhos do mundo para anunciar Cristo que está „na moda”, porque parece atrair o que é impressionante, considerado um sucesso a nível de difusão. Deveríamos regozijar-nos que o bom Deus suscita na história carismas diferentes que têm por fim a renovação da Igreja. Pertence-nos a fidelidade à nossa vocação, mergulhada no mistério da Encarnação. Vou fazer uma curta digressão pessoal. No mês de fevereiro deste ano participei num colóquio Internacional Rumo à cura e renovação, consagrado aos abusos sexuais na Igreja. Um momento forte foi uma celebração penitencial pelos pecados dos abusos em relação às vítimas. Começou com a contemplação do mistério da Encarnação. Na Igreja de Santo Inácio em Roma, na obscuridade, com o acompanhamento de uma linda música, vimos diapositivos: a beleza do mundo, da criação, e seguidamente a destruição: guerras, estragos, dor, sofrimento. Um olhar sobre o mundo cheio de tensões, olhar/convite a entrar na perspectiva da Santíssima Trindade, que se rematou com o envio de Jesus para o mundo, tão amado por Deus. Pode dizer-se que assim é a fonte que define o nosso modo de vida, quando dizemos com Isaías: „ Eis-me aqui, envia-me”, envia-me para este ou aquele lugar muito simplesmente para ser cristão lá, para ser um homem que imita Cristo.
Eis o nosso caminho: acolher o mundo não como um perigo a superar, mas como um lugar do testemunho cristão, para „interrogar” – o que é que a laicidade do mundo diz à nossa consagração? O acolhimento do mundo entendido num modo positivo, como lugar de testemunho, resulta do acolhimento da verdade evangélica que o Reino de Deus não é deste mundo, que ainda estamos a caminhar rumo ao lugar onde veremos a Deus cara a cara. O Reino e a realeza de Deus não são uma utopia a realizar nesta terra. Esta perspectiva escatológica permite ver que os tempos em que vivemos não constituem um perigo particular para o Cristianismo, um perigo para a Igreja, mas são, pelo contrário, um desafio, uma oportunidade, uma prova da fé e da fidelidade ao nosso Mestre e Senhor.
Por conseguinte se são um desafio, uma oportunidade, então vale a pena pôr-se à escuta do que o mundo nos diz: dos desafios que ele nos apresenta, do que nos ensina. Os representantes dos Institutos seculares nas suas conferências tentarão tomar em consideração quatro temas que nos pareceram importantes. Ei-los: o modelo novo da santidade, apresentado pelo Arcebispo Gerald Cyprien Lacroix, primaz do Canadá; o que significa ser leigo na Igreja – …… da França; novos modelos de comunicação – Ivan Netto da Índia e como a vocação muda quando o mundo muda – Paola Grignolo d’Italie.
À guisa de conclusão
Alguém disse „A profecia não é o abandono da realidade para avançar rumo a um céu místico e sagrado, rumo a um futuro mítico que reproduz as ilusões da ideologia. Segundo o ensinamento dos profetas bíblicos, a profecia é a fidelidade em relação à história, quando ao mesmo tempo apoiamos os nossos pés nos caminhos terrestres, mesmo se esses pés se sujarem por causa da poeira. A profecia é ser as crianças da sua própria época, sociedade, cultura, nas quais ficamos mergulhados para nos tornarmos pais de uma geração nova que não fica encantada pelo momento – não devido a uma inadaptação ou a uma revolta, mas devido à própria capacidade de recriar esse momento. A Encarnação, que constitui o coração do Cristianismo, é a cruz fixada na terra da história para reconstruir a ruptura entre a transcendência e a imanência, entre o tempo e a eternidade, entre o espaço e o infinito, e renovar assim um novo encontro entre o homem e Deus” (p. 112).
Desejo portanto a cada um de vós que se torne profeta– criança da própria época, tornando-se pai de uma geração nova.
A CONSAGRAÇÃO DE JESUS
O vocábulo italiano «sacro» deriva do latim sacer, sua raiz pode estar ligada ao acadiano saqàru (impedir, proibir). Em grego, a série de significados gira em torno dos termos gregos άγιος (grandeza, transcendência e separação do divino), e ίερός (homens ou objetos privilegiados pela influência divina). Sua raiz indo-europeia - sac, sak, sag - significa unir, aderir, cingir, denotando a ideia de uma realidade que permanece cingida, ligada à divindade. A etimologia sugere que o termo pode ser usado para definir um lugar, um objeto, um papel (sacerdote) ou um ritual (sacrifício, consagração) considerados «sacros» por proporcionarem ao mesmo tempo inclusão/união e exclusão/separação. Portanto, o sacro une e separa.
No substantivo «consagração» temos a presença da palavra «sacro»: de fato, «consagração» significa tornar sacro, unir determinada realidade profana à esfera do «sacro». Esse mesmo sentido também está presente na palavra «sacrifício»: sacrum facere, tornar sacra uma determinada realidade através da sua eliminação ou aniquilação, para que seja possível uma comunhão com a divindade e com a esfera do sacro. Os termos sacro, consagrar, sacrifício, sacerdócio, sacello exprimem a mesma dinâmica. Através da consagração, uma realidade não sacra, que chamamos de profana (isto é, que está em frente ao fanum, ou seja, ao templo), entra para a esfera da divindade, do mistério.
Trata-se de algo essencial na religiosidade, já que a experiência humana de Deus deve ser mediada, isto é, deve passar através de algo que não é Deus. Esse «algo» é o evocador do divino, torna-se sacro, não semelhante, separado do profano, objeto de respeito, de veneração e reverência. Para entrar em contato com o divino, o homem, durante a vida, no mundo profano, seleciona gestos, pessoas, lugares e momentos com valência simbólica, considerados privilegiados para o encontro com o divino. O «sacro» está presente em todas as religiões. O homem considera «sacro» o lugar, o momento e a pessoa que proporciona a sua experiência com o divino. Por causa dessa mediação simbólica, a realidade escolhida para mediar o divino é assimilada e torna-se objeto de reverência e veneração (uma transposição do profano).
O «sacro» está diretamente ligado à religião, segundo Lactâncio (cf Divinae instituitiones, IV, 28). A religião transmite uma ligação estreita (religare) entre o homem e Deus. Ao predispor o vernáculo do religare (ligar o homem e Deus, e os homens em uma comunidade de fé) o sacro ordena e predispõe as razões da separação e da remoção. Separar e «tollere» (tirar): quem não compartilha da dimensão do «sacro» de uma comunidade permanece separado da mesma. Regras e comportamentos de «pureza» e «impureza» exprimem o vernáculo do sacro.
No âmbito da filosofia da religião, da ciência das religiões, das ciências bíblicas e da teologia sistemática, com o termo «sacro» designa-se tudo o que é venerado pelo homem, indisponível ou experimentado como potência da qual os homens são totalmente dependentes. As experiências religiosas podem assumir formas as mais diversas, mas prevalentemente duas opostas: o sacro pode ser interpretado de modo surpreendente e imprevisível (tremendum), expresso nos testemunhos bíblicos, sobretudo nas teofanias, onde o espanto inesperado e as iluminações fulgurantes revelam o aspecto numinoso do divino, presente especialmente na experiência da morte; ou experimentado de maneira atraente e envolvente (fascinans), como no vento e na experiência do amor .
Esta duplicidade da experiência sacra está também presente na revelação bíblica. De um lado a santidade de Deus, com suas características de transcendência, inefabilidade e indisponibilidade, faz com que o homem, em relação a Ele, aja com temor e tremor. Por outro lado, a essa mesma santidade acrescenta-se o que não é divino – como o profeta, o consagrado, o homem, com misericórdia, perdoando culpas, sentindo-se atraído afetuosamente por Ele. Encontramos esta dúplice experiência quer no Antigo como no Novo Testamento, se bem que devemos constatar que a experiência de Jesus faz com que o sacro constitua uma decisiva superação de sua latente ambiguidade. Essa novidade não é a consequência reconhecida e assumida pelos textos do novo testamento, e nem mesmo se tornou praxe eclesiástica.
No Novo Testamento, encontramos as duas características fundamentais da revelação de Deus do Antigo Testamento: de um lado o Deus da vontade incompreensível e terrível, que domina a partir de uma luz inacessível (Hb 10:31; 1Pt 5:6; 1 Tm 6:16), punitivo, vingativo, supremo defensor e executor; enquanto que, do outro lado, o Dio-Abbà, doador de vida, perdão e amor, que não ama os bons e castiga os maus, mas ama a todos, porque todos são igualmente suas criaturas (Mateus 5:45): uma imagem de Deus que escandaliza o mundo religioso vigente nos tempos de Jesus.
A experiência singular que Jesus tem de Deus situa-se no ápice do Antigo e do Novo Testamento. Nele, em Jesus, o «sacro» é redefinido e liberado da sua ambiguidade: as realidades fundamentais da religião hebraica, ou de qualquer religião como tal, como o sacrifício e a compreensão do que é «sacro», são descontinuadas, revividas e redefinidas por Jesus a partir da sua consagração. Quero percorrer os pontos centrais desse percurso cristológico: o batismo, o ministério pré pascal e a paixão morte.
1. O batismo
Os Evangelhos narram esse evento na vida de Jesus sob a forma de midrash cristão, um gênero literário característico do Antigo Testamento, que nos oferece uma interpretação da identidade de Jesus. Esse midrash tem a função de dar uma resposta ao embaraço dos primeiros cristãos que consideravam o batismo no Jordão uma subordinação de Jesus a João Batista e a constatação de que Jesus sentira, ele também, a necessidade do perdão e da conversão.
Podemos nos perguntar porque Jesus decidira fazer-se batizar por João? É razoável afirmar, antes de tudo, que Jesus ficara sensibilizado com o anúncio de João Batista e com o convite à penitência e à conversão para o perdão dos pecados. Devemos, em relação a esse ponto, refletir se o batismo de Jesus, como batismo de penitência, implica que Jesus tivera motivos para se arrepender. Se assim fosse, isso significaria que Jesus tinha consciência do próprio pecado.
O gesto de Jesus revela a maneira com que Deus escolhe estar no meio dos homens: «estar com». Jesus não se limita a curvar-se diante dos pecadores: está com eles. Não tendo pecados, a sua solidariedade com a humanidade pecadora é total . Jesus, justamente por «estar com» os pecadores vive interiormente, sem cometer o seu pecado. Jesus pode tomar o pecado, porque não tem pecado. Isso significa que a solidariedade de Jesus com o pecador é tamanha ao ponto de identificar-se como pecador (cf 2Cor 5:21). O batismo de Jesus é paradigmático, já que nos ajuda a compreender quais são os elementos que constituem a sua consagração.
A «consagração» busca unir uma certa realidade profana à esfera do que é «sacro», sendo esta uma dinâmica de exclusão/separação e de inclusão/união. A partir do reconhecimento fenomenológico do batismo de Jesus percebemos a ausência do momento de exclusão/separação. Jesus identifica-se com os pecadores: plena solidariedade com aquela realidade profana, dessacralizante, que é o mundo do pecado e do impuro. Jesus está «com os pecadores» de modo não religioso. Não há negação do mundo dos pecadores mas profunda aproximação e solidariedade.
A abertura dos céus, na cena do batismo (cf Mateus e Lucas), e a descida do Espírito Santo indicam o movimento de identificação que a esfera do «sacro» coloca àquele que é, por sua vez, identificado com os pecadores. «E aconteceu que, como todo o povo se batizava, sendo batizado também Jesus, orando ele, o céu se abriu; e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como pomba; e ouviu-se uma voz do céu, que dizia: «Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo.» (Lucas 3,21-22). Nesta teofania batismal o evangelista nos revela que o núcleo profundo da experiência religiosa de Jesus não é uma decisão ou um comando, mas um sentir-se originado por um amor precedente e recebido.
2. A consagração pré pascal
Por um certo tempo Jesus não só batizava, mas também pregava o mesmo anúncio de João, inclusive a mensagem social. Todavia, num outro momento aconteceu alguma coisa que fez com que Jesus deixasse João. Jesus parou de batizar e de anunciar o iminente dia do Juízo. O que o fez mudar de ideia ao ponto de se falar de uma radical conversão de Jesus? De fato, a um certo ponto os Evangelhos testemunham que Jesus tinha uma mensagem própria e definia a si mesmo em contraste com João.
Numa certa fase da história, por alguma razão, Jesus para de batizar, de jejuar, de fazer a oração ritual. Esses comportamentos de Jesus de Nazaré chamam imediatamente a atenção das pessoas da Galileia (cf Mateus 9:14-15; 11:18-19; Lucas 11:1). De um estilo de vida ascético, centrado no anúncio da iminente ira de Deus, Jesus anuncia que o Reino de Deus já chegou. O texto evangélico que mostra essa mudança radical é Lucas 11:20 (Mateus 12:28). «Mas, se eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus, logo é chegado a vós o Reino de Deus.».
Jesus estava consciente de que onde o Espírito operava, ali fazia irrupção o Reino de Deus. O Evangelho apócrifo de Tomé afirma isto claramente: «Aquele que está perto de mim está perto do fogo, e aquele que está longe de mim está longe do Reino» (Evangelho 2º Tomé 82).
É no início do seu ministério que Jesus se conscientiza de sua consagração. «Nem sempre lembramos que a expressão «Jesus Cristo» significa «Jesus o consagrado». Ele próprio definiu-se dessa maneira na Sinagoga de Nazaré (Lucas 4:16ss), citando uma passagem do profeta Isaías (61:1-2): «O Espírito do Senhor está sobre mim; porque o Senhor me ungiu para pregar boas novas aos mansos»
A experiência do Espírito ali presente causa uma mudança tão radical na vida de Jesus que envolve todos os membros da sociedade. Os doentes, os pecadores e os endemoninhados são os destinatários diretos do Reino. Jesus espera a chegada do Reino de Deus e não mais a chegada de um batizante messiânico. Se o batismo de Jesus no Jordão representa o momento de decisão, da vida privada de Jesus para a vida pública, o ministério da cura e do exorcismo representa a virada radical para a sua vida pública.
A pergunta que João dirige a Jesus mostra, claramente, a diferença entre o Reino escatológico que o Batista esperava e a própria experiência de Jesus. O que Jesus realiza e diz, infelizmente, não corresponde totalmente ao esquema do Batista; Ele esperava o batizante messiânico e, ao contrário, defronta alguém que é amigo dos publicanos e dos pecadores. Por que continuar a batizar as pessoas pelo perdão dos pecados, de modo que possam se livrar da ira iminente, quando os doentes, os pobres e os pecadores encontram diretamente a misericórdia de Deus sem que sobrevenha a ira de Deus? A atenção não se dirige mais ao homem que faz penitência, mas ao amor de Deus que usa de misericórdia e recupera a sua criatura.
A chegada do Reino não está somente ligada à sua obra taumatúrgica, aos milagres e às palavras de Jesus: no centro está a sua própria pessoa. Qualquer um que encontrasse esse Jesus, encontrava-se frente a frente com o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. «Para os contemporâneos de Jesus, o encontro com Ele era um convite para o encontro pessoal com Deus vivente, já que aquele homem era pessoalmente o Filho de Deus. O encontro humano com Jesus é o sacramento do encontro com Deus» . A experiência de Jesus, nesse sentido, é a realização suprema e, por isso mesmo, fonte ou norma de cada encontro com Deus. Nos gestos e nas palavras de Jesus de Nazaré as pessoas sentem-se tão próximas no Reino de Deus que, encontrando Jesus, tem-se uma experiência com o próprio Deus. «Como o Pai me amou, também eu vos amei a vós» (João 15:9).
Compreende-se Jesus a partir do amor de Deus e a partir desse amor ele existe (eksiste.) Quanto mais Deus Pai se faz próximo de Jesus de Nazaré, mais o ser de Jesus esvazia-se para dar espaço à βαϬιλϵία. A expressão de João (1:18) «ό ών έίς τόν κόλπον τοΰ πατρός » indica um movimento para um lugar (έίς τόν κόλπον ), o seio do pai: trata-se de um permanecer dinâmico no seio do Pai. O seu ser homem consistia na liberdade de não querer ser nada para si. «Jesus é um homem unificado, totalmente orientado para uma só direção. Tem um só interesse e não vários. Tem uma só palavra a dizer, não muitas [ ...] Jesus é uma pessoa unificada, sempre focada no centro, falando sempre desse centro e não de outra coisa» . O ser desse homem era sim a vivência de um esquecimento de si que supera qualquer atenção sobre si.
Na sua radical «pró existência», Jesus revela a modalidade da sua consagração. É ungido por Deus, ou seja, «testemunha fiel», já que Jesus torna visível o Deus indescritível e invisível. «Se eu der testemunho de mim, o meu testemunho não é verdadeiro. Outro é quem dá testemunho de mim; e sei que o testemunho que ele dá de mim é verdadeiro» (João 5:31); «Ainda que eu mesmo testemunhe em meu favor, o meu testemunho é válido, pois sei de onde vim e para onde vou» (João 8:14). A diferença entre os profetas do Antigo Testamento e Jesus de Nazaré consiste no fato de que Jesus Cristo é a «testemunha fiel» (cf Ap 1:5), o revelador de Deus: «a entrega de Jesus ao mundo não é somente a consequência de sua entrega a Deus, mas a sua continuação, a sua visível transparência.»
Ser como tal não transgride a estrutura da revelação bíblica. Jesus não substitui Deus; não se coloca ao lado de Deus e não se coloca no lugar de Deus, usurpando a Sua dignidade: Jesus revela a origem do Amor do Pai e justamente nesse amor «é» Filho. Jesus não dá testemunho de si mesmo, deixa que seja Deus Pai a amar por ele e através dele. «Se [Jesus] acolheu publicanos e pecadores, foi porque queria, desse modo, revelar quem é Deus (Lucas 15): não somente um gesto de salvação em favor dos pecadores, mas antes, e mais profundamente, um gesto de revelação» . Quando Jesus pronuncia «eu sou» quer manifestar Aquele que o enviou: o Pai. «Quando, então, Jesus pronuncia «eu sou», não revela a si mesmo, mas sim o Pai (cf João 8:24s)» . O que é dito sobre o dizer e o fazer de Jesus - «eu não faço nada sozinho; eu não digo nada sozinho, mas como o Pai me ensinou e como faz o Pai, eu faço e ajo» - vale ainda mais o ser de Jesus: «Eu sou » pois estou relacionado ao Pai (πρδς του θεόυ).
3. Consagração como abertura ao outro
A nota característica e a mínima base histórica da autêntica tradição sobre Jesus pré pascal nos atestam que Jesus teve um amor preferencial por todos aqueles que se encontravam à margem da sociedade do seu tempo: os doentes e os endemoninhados, os publicanos e as prostitutas, os pequenos e os pobres. Aliás, Jesus abriu-se aos outros, em termos de cultura e religião: isto é, ao pagão. Em alguns encontros (cfr Marcos 5:1-20; Marcos 7:24-30; Lucas 17:11-19) Jesus ultrapassa o próprio limite confessional e missionário (não hebreu) e deixa-se guiar na compreensão do Reino de Deus como quem está fora do povo eleito. «Nestes trechos, Jesus mostra-se como alguém que é capaz de ultrapassar fronteiras e construir pontes» .
É interessante notar, a propósito, o papel dos Samaritanos na revelação da identidade de Jesus e do que é a verdadeira fé.
A abertura de Jesus para com os outros é particularmente evidente em relação àqueles que eram inimigos de Deus: os pecadores. Jesus entregou-se totalmente a eles também. «Amigo dos pecadores» (cf Mateus 11:19). Oferecendo o perdão antes do arrependimento, Jesus transgride as exigências morais impostas pela Lei. A ação de Jesus, de comer com os pecadores, simboliza a prioridade da misericórdia de Deus (indicativo) sobre o juízo e a ira de Deus (imperativo).
Jesus ofereceu aos publicanos, às prostitutas e aos pecadores a participação no Reino de Deus sendo esses ainda pecadores (cf Rom 5:8). Nessa comunhão, Jesus vai além de uma simples simpatia em relação aos que vivem fora de qualquer relação. Jesus realiza a sua consagração comungando com o destino de quem é «outro» e «outro diferente de Deus». Fazendo-se pecador com os pecadores, publicano com os publicanos, Jesus subtrai o pecador e o publicano do que constitui a essência do pecado, isto é, a não relação, o isolamento infernal em que o homem se encontra. Jesus encarregou-se de todos aqueles que vivem no inferno e na morte. «Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e sobre si levou as nossas doenças» (Mateus 8:17).»
O Novo Testamento manifestará essa identificação de Jesus com o outro através das expressões: «peri emon» e «peri pollon». «Paulo chama essa troca pelo nome «reconciliação» (katallage). O termo grego contém o adjetivo alias (outro); reconciliação significa tornar-se o outro» . Deus reconcilia os homens, faz comunhão com o homem, tornando-se homem: tornando-se outro.
4. A entrega de Jesus em sua paixão e morte
Toda a existência de Jesus foi um deixar-se determinar até o fundo pelo amor de Deus Pai: É Ele, Abbà, quem determina a vida bem como a morte (cf Mateus 26:38). Jesus sabe que é constituído pelo Reino que virá, isto é, está consciente de que a sua vida e a sua morte têm um senso definitivo na esperança escatológica. «Em verdade vos digo que não beberei mais do fruto da vide, até àquele dia em que o beber novo, no reino de Deus » (Marcos 14:25); «Pois eu lhes digo que não beberei outra vez do fruto da videira até que venha o Reino de Deus» (Lucas 22:18). «A sua voz firme reflete a disponibilidade de entregar nas mãos de Deus o seu espírito» . Jesus foi a «testemunha fiel» já que confiou total e radicalmente no amor de Deus Pai (cf Lucas 23:46). «Sabendo Jesus que já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim» (João 13:1).
No Novo Testamento encontramos um verbo que liga em unidade os Evangelhos e a primitiva interpretação da morte de Jesus elaborada pelo apóstolo Paulo. Esse verbo permite compreender mais intimamente no que consiste o segredo da consagração de Jesus. Trata-se do verbo «entregar» (παραδιδόναι) . O verbo «entregar», em latim «tradere», assume, em Mateus 26:46-47, o significado de traição. Jesus é entregue por Judas; Judas entrega Jesus aos principais dos sacerdotes (Marcos 14:10) e aos escribas; o levaram e entregaram a Pilatos (Mateus 27:1); Pilatos entrega Jesus aos soldados (Mateus 27:26); os soldados entregam Jesus à cruz (Mateus 27:31). Os evangelistas sublinham, no entanto, que Jesus não é passivo nessa sucessão: «o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos» (Mateus 20:28). Também Marcos, Lucas e João sublinham a livre e consciente auto doação de Jesus: «eu dou a minha vida / tenho o poder de oferecê-la» (João 10:17). Em Gl 1:4; 2:20 e nos textos deuteropaulinos Ef 5:2.25; Tit 2:14 e 1Tim 2:6 é Cristo aquele que doa tudo o que recebeu de Deus Pai (Mateus 11:27). «Entregou o espírito» (João 19:30).
O Espírito recebido no batismo no Jordão é agora entregue para o batismo no Gólgota. Jesus submerso nas águas profundas da morte, reemerge e «logo que saiu da água, viu os céus abertos, e o Espírito, que como pomba descia sobre ele. Ouviu-se uma voz dos céus que dizia: «Tu és o meu Filho amado em quem me comprazo» (Marcos 1:10-11). Agora, o Espírito que nasce da morte de Jesus derrama-se sobre toda a humanidade, «os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos jovens terão visões, e os vossos velhos sonharão sonhos. E também do meu Espírito derramarei sobre os meus servos e as minhas servas naqueles dias, e profetizarão» (Atos 2:17-18). Doando si mesmo «por nós» revela o fim da sua consagração. João afirma no início de seu Evangelho: «Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Deus enviou seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele» (João 3:16-17). «Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que nem mesmo seu Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como não nos dará também com ele todas as coisas?» (Romanos 8:31-32).
5. Consagração como sacrifício de Jesus
A palavra «consagração» significa tornar sagrado/sacro, unir uma determinada realidade profana à esfera do que é «sacro». Esse sentido aparece também na palavra «sacrifício»: sacrum facere, tornar sacra uma certa realidade através da sua eliminação ou aniquilação para que seja possível uma comunhão com a divindade e com a esfera do sacro. Os termos consagrar, sacrifício e sacerdócio chamam a atenção nessa dinâmica.
Essa terminologia de consagração permite a Jesus tematizar a sua doação, especialmente através dos Cantos do servo do Senhor e da ceia pascal. Em particular Isaías 53 teve um papel efetivo na compreensão que Jesus deu de toda a sua vida, sobretudo a partir do momento em que sentiu como iminente a possibilidade de morrer violentamente. Oferecendo a sua vida pela humanidade, Jesus cumpriu o ser-por, a proexistência do Servo. Encontramos aqui duas categorias soteriológicas fundamentais que retomaremos no terceiro ponto: a expiação e a idade sacrifical com base na qual a consagração de Jesus revela a sua definitiva dimensão do ser-por . Com o pão e o vinho, Jesus interpretou a própria morte. Nesses símbolos Jesus exprime o seu «Eis-me»: Isto é o meu corpo, que será entregue por vós.
Essa terminologia de consagração e de expiação vicária é bem expressa na Carta aos Hebreus (5:7-9; 9:11-14) 15. A diferença do ritual da expiação, em que o oferente identificava si mesmo com o animal a ser sacrificado para encontrar comunhão com o Santo, na consagração de Jesus, Deus identifica-se com Jesus de Nazaré (Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo) e Jesus com os pecadores, entregando-se a eles.
Nessa inversão de dinâmica revela-se a novidade da consagração de Jesus. Não pode ser compreendida numa lógica de «ritual expiatório», em que o pecador deve oferecer sacrifícios para obter o perdão dos pecados, nem numa lógica de «bode expiatório», em que o inocente é a vítima dos pecadores. Assim, como na superação do ritual expiratório não é o pecador, mas Deus que se identifica com a vítima sacrificial, na superação da dinâmica do «bode expiatório» não é o pecador quem descarrega a própria morte sobre o inocente – passivo e constrangido pela violência do pecador – mas é o inocente quem se entrega ativa e livremente.
A consagração de Jesus traz consigo um potencial revolucionário, já que manifesta uma solidariedade vivida até as últimas consequências, não sendo somente uma simples participação dos sofrimentos alheios, mas sim a aceitação do destino, da história e do ser alheio. Mas essa solidariedade é vivida na renúncia de si e entrega nas mãos de Deus Pai. Sem essa entrega nas mãos de Deus Pai não teria sido possível para Jesus permanecer fora do círculo diabólico da violência religiosa que impõe aos homens sacrifícios para alcançar o Sacro. Jesus toma para si o que é deles (pecado / morte) para doar a eles o que é seu (perdão / vida). «[Jesus] com o Espírito eterno ofereceu-se a si mesmo, imaculado, a Deus (Hebreus 9:14). Jesus é consagrado, já que é Aquele que doa o Espírito. O Espírito que recebeu no batismo no Jordão é agora entregue para o batismo no Gólgota. O Espírito que nasce da morte de Jesus é derramado sobre toda a humanidade para o perdão dos pecados (cf João 20:22).
A consagração de Jesus nos faz redefinir a nossa ideia de sacro, tornando supérflua e mais contraditória cada pedido de sacrifício, por senso de culpa, para restabelecer a comunhão com o Santo. «Misericórdia quero, e não sacrifício. Porque eu não vim para chamar os justos, mas os pecadores» (Mateus 9:13). A relação com o sacro não ocorre mais através da negação da vida, através do ritual de um sacrifício, mas no reconhecimento do dom e sua redundância. O Senhor não espera que os homens Lhe ofereçam algo, mas Ele próprio fez-se um de nós. Não são mais os homens que devem oferecer a Deus, mas é Deus que ofereceu-se aos homens, e Deus se oferece doando a sua própria capacidade de amar.
Com as palavras de Santo Inácio de Loyola na Contemplação para obter o amor, no n. 234: «examino, com muito amor, quanto Deus nosso Senhor fez por mim e quanto me deu de si; e quanto Ele desejava dar-se, em tudo, segundo a Sua divina disposição. Reflito, então, sobre mim mesmo, considerando o que, de minha parte, é razoável e justo oferecer e doar à Sua divina Majestade, isto é, todas as minhas coisas além de mim mesmo, como quem oferece com muito amor e diz: Toma, Senhor, e receba toda a minha liberdade, a minha memória, também o meu entendimento, toda a minha vontade e tudo o que tenho e possuo. Vós me destes com amor, todos os dons que me destes, com gratidão vos devolvo: disponde deles Senhor segundo a vossa vontade. Dá-me somente o vosso amor e vossa graça e isto me basta».
NO MUNDO, MAS NÃO DO MUNDO. REFLEXÃO SOBRE A CONSTANTE TENSÃO DO SER CRISTÃO
Hanna-Barbara Gerl-Falkovitz
1. Dois mundos:
Um caminho de reflexão com Hildegard von Bingen
Onde estiver o Cristo haverá sempre uma tensão. Sua presença pode desencadear uma vibração silenciosa, mas pode também inflamar-se numa luta renhida, pois Ele, o Cristo, não veio trazer a paz, mas a espada. De um lado, Ele è – iniludivelmente – o Senhor de tudo, de todos os seres humanos, de todos os anjos: “Todas as coisas foram feitas por ele” (Jo 1:3). Portanto, tudo tem a sua marca, é por ele permeado. De outro lado, tudo pode encerrar-se nele e, coisa extraordinária, justamente por aquela força que Ele mesmo colocou na criação: a independência, a autonomia viva, a liberdade. Essa força de ser, que age nos seres por Ele criados, que se torna visível no “ser à imagem e semelhança de Deus”, paradoxalmente pode se voltar contra Ele. “Temos sempre na boca o sabor da maçã do paraíso” , diz Hildegard von Bingen (1098-1179), o sabor da revolta, da auto-destruição. Aquela grande beneditina, que em setembro deste ano será proclamada doutora da Igreja, lançou um olhar profundo nos “dois mundos”, entre os quais oscilamos.
Existem, de fato, dois (tipos de) mundos diferentes: aquele criado pelo Lógos, que é sua “propriedade” (Jo 1:3) e aquele que se desliga do seu criador e quer pertencer a si mesmo (apesar de não ser possível na realidade). E è aqui que se desenrola o drama de Jesus, a história dramática do filho do homem, que perece porque a sua “propriedade” isola-se em si mesma.
Identificamos, com as vigorosas palavras de Hildegard, a circunstância que Deus, na criação, não pôde nem quis estabelecer: o reconhecimento espontâneo das criaturas da sua própria origem. Nisto reside, e sempre residirá, a possibilidade do pecado original. Se Deus tivesse excluído esse livre afeto, não teria criado seres humanos (e anjos), mas produtos, imitações, seres privados de vontade – mas quem quer ser amado por fantoches? Justamente por não ser escravagista Deus não criou escravos. Pelo menos uma consideração pode nos guiar nesse dilema tão complexo: o amor, verdadeiramente superior, o Seu amor almeja a liberdade, almeja deixar que o outro seja ele mesmo – e é esta a Sua vulnerabilidade. Limite, não onipotência, mas limite do amor construído do interior.
“Com a potência da tua força imensamente magnífica, não tiranizas ninguém.” o amor originário, de resistir a sermos amados, de negar o amor recíproco. Ao invés de dizer tu e eu o ser humano juntamente com o anjo negro, diz somente eu e eu. Existe em nós uma voz que diz: “Por que deveria eu cuidar de outro e não de mim mesmo?” (...) Que vida seria esta, se quisesse responder a todas as vozes de alegria e de tristeza se conheço somente a minha existência?.” Foi o que aconteceu a Lúcifer e às criaturas como ele, “que queriam ser alguma coisa por si mesmos. De fato, quando contemplaram a própria glória e a beleza no seu fúlgido esplendor esqueceram o seu criador.” Isto se repete de modo terrível também para o homem “que, presunçoso, estabelece sozinho a lei, como se fosse o próprio Deus (...); e depois esmaga dentro de si aquele amor, com dolorosa amargura” .
Excluída a linguagem religiosa, contemplando o que acontece no quotidiano, o que chama a atenção neste trecho é o esquecimento da própria origem e o isolamento do homem em si mesmo (curvatio animi que Agostinho chama de pecado). A força, o vigor e a autonomia nos levam a separarmo-nos daquele que nos doou tais atributos. “Quando acordaram na própria luz, esqueceram-se de mim.” O inebriar-se pela própria luz se exprime normalmente com uma expressão tediosa e abstrata de afastamento de Deus. Concretamente, ai exprime-se a grande verdade, que não estamos em comunhão com Ele e que cada tentativa de estabelecê-la por muito tempo acaba mortalmente.
“Assim, toda a natureza humana é distorcida ou contraída.” É inextirpável a suspeita que Nietzsche interpretou – segundo muitos – com maior perspicácia em suas malévolas reflexões: onde está Deus, eu não posso estar. Esta negação de Deus em favor da própria força é a característica obscura do século passado. “Como o espírito se mata se não tenta mais agarrar-se a Deus.”
O flanco descoberto, portanto, está, na criação. Deus estabeleceu assim porque não quer o homem seguro exatamente para não lesar a essência da sua criatura. O próprio homem – se Deus lhe impusesse a sua vontade para “ajudá-lo” – deveria opor-se a qualquer intervenção.
Por isto, é preciso uma longa e obstinada luta para se chegar à verdade sobre nós mesmos. Onde está a verdadeira fonte da força? Onde nos isolamos de qualquer força – o que em outras palavras equivale à castração? Exatamente como castradas são as sociedades nas quais o céu foi fechado. “Quanto desejou a criatura o beijo do criador...” – e no entanto, se opõe a ele. Vamos considerar também, com a ajuda da antropologia filosófica, este mysterium iniquitatis sempre ativo.
2. O mundo do amor por si e pela violência
Segundo todas as pesquisas antropológicas, a agressão é um impulso fundamental. Isto significa que – como todos os impulsos – ela também é necessária para conservar a vida: é potência de si, força vital, afirmação de si absolutamente lógica. Mas é também evidente um lado obscuro: o impor-se às custas dos outros. Uma agressão deste tipo é inerente a tudo o que vive. Quer se trate da planta que invade as outras para receber suficiente luz ou um animal que devora outro mais fraco, mesmo se da mesma espécie, ou ainda o ser humano que desde a infância aprende a impor-se às custas dos outros. É uma lei aplicável a tudo o que existe, expulsar os outros, nutrir-se dos outros, submeter ou até mesmo eliminar os outros para crescer. As religiões conhecem a psicologia do profundo: sede de viver e medo, culpa e existência estão inextricavelmente entrelaçadas no profundo. Agostinho, o grande pensador do início do cristianismo, chamou isso de “pecado original”: uma interpretação da existência com um simples olhar. Arthur
Schopenhauer falava de uma “grave culpa do gênero humano por sua mera existência” , que se encontra igualmente no Cristianismo, no Bramanismo e no Budismo. No meio tempo, o conceito de pecado original foi muito combatido. “No entanto, sem esse mistério, que é o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis a nós mesmos”, escreveu Pascal. A vida age cruelmente sobre a vida, vive da morte de outros. Nesse tecido instintivo cada um de nós nasce – mas esta agressão dada pela natureza pode ser subjugada? Como transformá-la construtivamente em força vital?
Para ver mais claramente a força da violência, da qual o “mundo” vive, é preciso aprofundar o mistério da vida, na qual a violência reside.
3. O duplo sentido da vida
A vida tem um duplo sentido, ao mesmo tempo desconcertante e inexaurível : de um lado ela é “concedida” antes do pensamento, sem opção nem mesmo dentro dos limites impostos; de outro é auto concedida e pode ser vivida autonomamente. A vida, portanto, é dádiva e, de outro lado é pessoal, propriedade. Ai encontra-se, evidentemente, a raiz decisiva da agressão: defender a vida como propriedade pessoal contra os outros, ampliá-la, impô-la se necessário, mesmo em prejuízo dos outros. Agressão como defesa, pelo medo inconsciente de não obter o suficiente da vida.
3.1 Vida como dádiva originária
A vida é vista somente do “exterior” através daquilo que os homens realizam e daquilo que é possível ser considerado como “algo vivido”. Entreabre-se, assim, uma reflexão sobre a vida subjacente: fazer ou padecer provêm de um “interior” do qual ninguém tem consciência. Isto significa que nós “vemos” a nossa vida não como base viva, radical da existência, mas como vida que se realiza da maneira originária, pré-reflexiva, por si só”. Este fundamento esconde uma “noite” impenetrável; nós somos noturnos para nós mesmos. Exatamente como o olho que vê tudo mas não se vê a si mesmo.
A vida não se “faz” e não pode ser “feita” – nem mesmo empiricamente -, (ela) pode ser somente mantida e transmitida. Mesmo quando, usando uma expressão feia, os pais “fazem” um filho, o processo de gerar e conceber vai muito além de uma ação biológica: os pais devem aprender a conhecer a criança, na sua própria vitalidade; a criança não é um “produto” dos pais. A fertilização in vitro e os clones utilizam materiais vivos preexistentes. A cadeia da vida atravessa as gerações, não começa do zero a cada vez. A vida é um dom originário, por isso mesmo incompreendida, incompreensível, inalcançável antes de qualquer aceitação.
A vida não existe simplesmente, ela vem sem ser chamada, vem da plenitude. A própria vida é plenitude, é alcançar o si já realizado. A vida nasce do fato originário do ser doado a si mesmo. E não é difundida com parcimônia, aos poucos, pelo contrário, se realiza constantemente, como uma creatio contínua, cuja abundância pode chegar amanhã. A nossa origem é imemorial, não podemos recordá-la.
3.2 A vida como autonomia
Por outro lado, a vida, mesmo se doada, é inegavelmente autônoma: é dada como crescimento (natureza é o que nasce). Intervém no mundo, retira por si mesma os “elementos” para existir. Ao respirar participamos constantemente do que nos circunda, o mesmo acontece ao comer, ao beber... De onde quer que venha a vida (e não respondemos ainda a pergunta sobre o doador), ela é uma dádiva; ou seja: dádiva de uma força própria, inata na pessoa. Desde o seu inexaurível, imperscrutável início, a vida pertence realmente a si mesma... É evidente nesta imagem: quando uma vela acesa acende uma outra, a segunda chama queima por si só, ainda que deva a sua existência à primeira. A colaboração é dada livremente por causa da grandeza da “vida”. Ser si mesmo não é furto prometeico, mas dádiva. Ser dado e dar-se não se excluem: a própria autonomia é dada. A vida intervém autonomamente no mundo e ali resgata si mesma, mesmo na própria liberdade. Assim, o núcleo vivo se transforma em “ego”, em ponto de referência do mundo, das coisas, do homem no “cuidado” de si mesmo. Não se trata de uma “separação”, ao contrário, este movimento configura o que é vivo.
3.3 A vida como posse: A culpa “ôntica” do mundo
Justamente pela sua invisibilidade, o dom da vida pode também ser pretendido egoisticamente, de modo ingrato e distraído. Nisto temos in nuce possibilidades obscuras: pretender com arrogância, sem pedir (ao pobre tira-se até o seu único cordeiro), dar por interesse (do ut des: eu dou para que tu dês) na troca, que pressupõe um segredo, excessiva vantagem do outro ou, radicalmente: manter para si o “dom da vida”, sem transmiti-la, gerando.
A auto-afirmação da vida, esta força da gravidade ingrata e sem escrúpulos, pode ser assim chamada: viver a própria vida como posse, de modo agressivo e avaro. Como uma posse que precisa ser aumentada constantemente e defendida como propriedade.
Já que a existência, em sua previsível finitude “não é suficiente” para si mesma, precisa-se da posse como uma aparente fortaleza a ser defendida, para não perder ou sofrer a perda da vida, enquanto não se torne inevitável a perda final, a morte. A existência insegura não força talvez a idéia de ter, esquecer e até “excluir” o outro?
Agressão, então, por um medo secreto: de insuficiência das provisões, que a vida não seja vivida plenamente, que o outro tenha mais e me prive de alguma coisa ou tome de mim alguma coisa... Temos aqui a superação do pensamento: como muitas vezes a culpa individual ocorre por uma profunda desordem interior. É inato, na existência, quase naturalmente, diria inevitavelmente, um distúrbio: uma avidez necessária, pronta para agir na vida. E com isso chegamos à agressão pré-culpada, à culpa “ôntica” pré-moral. Muitas religiões falam disso, buscando mitos e imagens relativas a toda a existência. Um desses mitos trágicos é o de Édipo, cuja “culpa inocente” se realiza no homicídio do pai e incesto com a própria mãe. Esta é a experiência do mundo também no sentido do Evangelho de João; todos estamos “no mundo” inevitavelmente inseridos no modo de vida egocêntrica que caracteriza o próprio mundo.
Um famoso documento dos pré-socráticos, o Fragmento 110 de Anassimandro (V século a. C.), tem por tema a culpa também das coisas: “as coisas se punem e descontam a pena por sua injustiça (adikias) segundo a disposição (taxin) do tempo”. Esta estranha declaração nos leva a interpretar a agressão como uma culpa devida à própria existência. O nascer e o configurar-se de todas as coisas, de fato, ocupam espaço, umas expulsam outras, até nutrem-se de outras, talvez extinguindo uma para poder existir em outra. Todavia, segundo Anassimandro, “a disposição do tempo” anula a remoção agressiva, já que o tempo obriga tudo a passar, a desaparecer, levando até ao esquecimento. O que é mais afastado da consciência moderna da inocência é o fato deste estranho ser imiscuir-se na “culpa” também de plantas ou animais. Tudo o que vive no seio da natureza nasceu graças a outro e um dia deverá ceder o lugar a outro. A natureza gera e destrói, não importando o que gera, o que destrói, sendo suficiente que a vida continue (...)”
Assim, a vida enfurece-se contra a vida, a vida precipita para a morte, a própria e a alheia. Aquele que vive com avidez só consegue incutir horror. Tommaso d’Aquino, contemplando o universo, refere-se a uma discórdia naturalis, de uma luta natural, em que não se busca conquistar espaços vitais, mas destruir diretamente o outro devorando e sendo devorados – de uma natureza, “com dentes e garras vermelhas” (Alfred Tennyson (1809-1892)). Não há exceções à regra de fazer sofrer os outros, tomar sem pedir a força vital do outro. Reinhold Schneider (1903-1958), importante autor católico alemão, ao contemplar, no final da vida, as “técnicas” dos insetos para devorar lentamente seus hóspedes do interior pelas larvas, tornou-se incrédulo como quando era jovem.
Com isto, entende-se o estreito nexo objetivo entre culpa e religiões, que praticam em seus numerosos e diversos modos e formas o rito da libertação coletiva da culpa. Portanto, não é fácil anular as religiões simplesmente criticando-as, como se fosse suficiente anulá-las para fazer desaparecer o seu semelhante, a culpa, já que a culpa “ôntica” não é uma invenção da moral decadente, mas sim um estado (pré-cônscio); se extinguirmos superficialmente a culpa, a mesma “vai adiante por meandros”: a culpa modifica as próprias formas fenomênicas, disfarça-se de modo monstruoso. No Processo, de Kafka, o acusado Josef K. jamais saberá o motivo de sua acusação; mas a causa é clara: é simplesmente culpado. Tal culpa “ôntica” perdeu-se em grande parte na consciência iluminada, mas não desapareceu da desordem do mundo.
Nesse contexto esclarece-se a insólita expressão pecado original, que inicialmente parece ser uma característica do Cristianismo na interpretação do Gênesis. Examinando mais atentamente o declínio da existência (e não somente a humana), expressa-se o nível mais ou menos simbólico nas culturas e nas religiões mais variadas; na “análise” desse declínio, mesmo se em nível mítico-narrativo somente, assemelham-se muito objetivamente. O “pecado original” é considerado, na tradição bíblica, em nível humano pré individual, e define uma capacidade de culpa implícita na capacidade natural e agressiva de impor-se. Manifesta-se e ativa-se, sobretudo no espaço interpessoal, como verdadeiro lugar do erro. Explicações ingênuas de uma culpa “herdada” em nível biológico, genético ou psicológico, não fazem sentido; trata-se, antes, de um perigo para as relações humanas. Sentir-se reciprocamente culpados significa, na acepção mais simples, colocar o próprio eu contra o outro. Exatamente o que acontece naturalmente em nível de pré-consciente: na rejeição do eu contra o tu, na sua instrumentalização para alcançar objetivos próprios, na não admissão e repulsa do outro do próprio domínio. Queremos que o tu se torne “es”, uma contraparte privada de vontade.
Cada um de nós nasce nesse entrecho, entre o incitar o outro para níveis inferiores e o impor-se, participando, até mesmo na auto-defesa, desse processo, em que permanecemos presos, construtivamente, como uma “herança”. Não poucas religiões e culturas, com uma antropologia de estrutura hierárquica, prevêem, de modo sistemático, a deterioração alheia, não considerando certas camadas da população nem como seres humanos no verdadeiro sentido da palavra: os párias, os intocáveis no sistema hinduísta das castas, constituem uma espécie de “seres humanos inferiores”. Mas também os totalitarismos do Século XX instrumentalizaram pessoas ou grupos de pessoas segundo planos precisos: “Prometeram construir para nós; agora constroem usando-nos” (Vasyl’ Stus).
A culpa originária, inerente a cada existência humana, é a culpa do impor-se contra a origem da existência, Deus, ou contra o “irmão”, até mesmo contra ambos. De fato, ambos são sujeitos à própria vontade, se possível de modo útil. “Pecado original” significa, no verdadeiro sentido da palavra, separação, para poder afirmar-se e estar consigo mesmo, ao invés de estar com os outros. Este é o mundo que se opõe à vinda de Jesus.
4. Solução da potência do “mundo”
A tarefa das religiões é preparar a superação das provocações, ou pelo menos uma proteção contra elas. O termo “santo” remete à reparação de algo destruído ou destrutivo: muito mais que sede de viver, o pensamento religioso faz desabrochar uma visão caridosa, encorajadora: existir é, sobretudo, uma dádiva. Ninguém se gera sozinho; uma origem concede a existência a todas as criaturas. Conceder a vida a um outro ser criado torna-se critério de uma cultura. Ninguém é a “finalidade” do outro, dizia-se no iluminismo. Conceder o nascimento ou permitir a vida torna-se critério de uma cultura: aceitar, por exemplo, a criança como “dádiva pura”. Isso, é óbvio, pressupõe que não se aceita a própria existência, ávida ou descontente, mas que se viva a existência com pasmo, precisando confirmá-la com a gratidão. Em níveis mais profundos, porém, isso pressupõe que a vida deve ser libertada do medo da própria força e dos próprios limites da sua “limitação” através de uma outra existência. Não se deve defender como um furto o que foi dado com inexplicável excesso de fartura: a própria vida. É possível uma vida plena, sem agressão, medo e avidez? Existem diferentes comportamentos religiosos que vão desde a fuga, na vida budista, até o domínio sobre o mundo da Bíblia: a vida flui “gratuitamente”. Descobrir as características dessa gratuidade significa substituir uma vida vista como propriedade (protegida de modo agressivo) por uma vida vista como dádiva.
4.1 “Fugir” do mundo extinguindo-se: Budismo
A antiga Índia, com sua tradição hinduísta variada, não conhece outra solução para a roda da vida, que gira inexoravelmente, a não ser o renascimento, que retoma sempre do início o pesado ciclo: mas renascimento significa também sede de viver e nova morte numa série eterna, sem uma solução.
Essa visão contém elementos tão ameaçadores que o Gautama Buda (Século V a.C.) pediu que a roda parasse na inexistência do ser e que a vida se dispersasse no nula: no Nirvana. Tudo o que significa “eu” é cancelado: a sede (de viver) morre. A dor é cancelada, já que o sofredor desaparece. Assim, na Índia, no entendimento do Buda, a resposta é a via da morte interior, antes de qualquer felicidade e decepção, para remover a desgraça do nascimento. Morrer antes da morte, esta é a solução no Buda. A sua elevação realiza, como último ímpeto, um dispersar-se, como “fuga da casa que queima”, enquanto quem salta e foge se dissolve definitivamente.
No Budismo originário, portanto, tem-se uma libertação no renascimento, considerado como uma desventura, um “apego” sempre repleto de medo e de avidez. O caminho para a cura da afirmação de si é octuplicada: quanto mais o ser humano reduz o próprio desejo de comer, de beber, de sexo e de poder, mais rapidamente ele se “erradicará”. Essa concentração ascética de si mesmo é possível somente no homem, já que na mulher o “apego” à vida é literalmente encarnado – sendo origem sempre de novos nascimentos. O asceta consegue saltar no nula, desembaraçar-se do renascimento e do medo existencial. Mas isso é possível somente retirando-se completamente do seu “eu”. A vida atual serve como trampolim para a felicidade, para o não ser mais - que não é mais experimentado como felicidade. - Schopenhauer compara concretamente “a pessoa que espera explicações na morte com um estudioso que está para fazer uma descoberta importante, mas que, no momento em que acha que está encontrando a solução, apagam-lhe a luz.”
De acordo com o Budismo, a agressão deve ser “evitada”, enfraquecida na base. O que não é fácil – mas haverá uma outra solução?
4.2 Antítese da violência do mundo: O Sermão da Montanha
O Sermão da Montanha de Jesus concentra elementos que determinam uma nova antropologia, onde a água da vida flui abundantemente.
Na imagem dos filhos de um mesmo pai, amados da mesma forma, nasce a ideia de uma nova humanidade contra a auto-afirmação natural e instintiva do grupo, bem como do indivíduo. A proposta do Sermão da Montanha é a de viver essa “perfeição absoluta do Pai celestial”. Uma novidade determinante é o fato de que o apelo ao forum internum, à decisão de consciência do indivíduo, íntima e não vinda do exterior, trouxe uma ética individual. A base da ética é sempre a Torá, sob forma de uma ética da vedação (“não fazer mal”); nas antíteses do Sermão da Montanha, essa ética é radicalizada numa ética do fazer, que chama cada indivíduo a um optimum virtutis: a dar o máximo – ao outro.
Faz parte disso não somente a proibição da violência, mas o conhecimento das raízes da violência: no próprio “coração”, para usar uma expressão hebraica. Daqui derivam as antíteses agudas que condenam também o homicídio perpetrado, daqui inicia sua preparação interna, aparentemente inócua, porque somente imaginada:”
“Qualquer um que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento” (Mt 5:22). O que parece exagerado, ou seja, considerar adultério o simples ato de “olhar uma mulher desejada” (Mt 5:28), na psicologia e na “formatação” inconsciente parece plenamente plausível. Também a extraordinária solicitação de renunciar à vingança, até mesmo oferecer a outra face (Mt 5:39) perde sua aparente “característica pouco viril”, se considerarmos a dinâmica incontrolável da vingança. De fato, a renúncia à violência é solicitada somente à pessoa atingida, para que se retire: não prevê a inatividade diante de outras vítimas ou a irreflexão sobre uma possível prevenção. Ao mesmo tempo, deve-se evitar uma condenação precipitada, um juízo do outro em relação a si mesmo: deve-se perdoar setenta vezes sete para impedir no próprio “coração” a presunção da auto-estima.
Os argumentos do Antigo Testamento são desenvolvidos plenamente no Evangelho – na verdade em teoria, porque geralmente não são praticados: também o inimigo está incluído no mandamento do amor. O conceito de luta existe somente contra o pecado, contra a maldade própria e estrutural. A violência faz parte desse éon, e demonstra seu caráter corrupto exatamente nele. O reino de Deus, ao contrário, é construído sem violência, seus profetas escolhidos, inclusive o Filho, no final submetem-se a essa violência sem opor resistência. É verdade que existem meios legítimos de defesa, sobretudo em relação à necessidade de proteção, mas a violência, para impor-se religiosamente ou de qualquer outro modo, é deplorável. (Rm. 12, 17sg; 1 Pt 2, 19sg).
4.2 “Troca maravilhosa” (admirabile commercium): Liberação do medo agressivo
Existe uma “característica singular” do Cristianismo no seu modo de superação do mundo. A começar pelo início da culpa, como descrito em Genesis 3: culpa é a divinamente grande possibilidade desperdiçada de se ser à imagem de Deus, de se tocar um princípio divino. Gênesis 3 recusa quem nos dá a vida: Foca malignidade porque julga que seja Ele quem nos priva da verdadeira vida. Agostinho generaliza sinteticamente: a culpa é do “amor próprio acrescido até desacreditar Deus” .
Começa aqui a encarnação de Jesus: “dar a própria vida para salvar a todos” (Mc 10, 44sg), assim como o “sangue da aliança que por muitos é derramado” (Mc 14: 24). Vida e sangue são nulificados, retirados do comportamento ôntico, do comportamento inadequado do homem. A vítima, Jesus, precipita-se nesse abismo do homem, trazendo consigo o universo, para sustentá-lo de baixo. A kenosis é o mistério do “esvaziamento” voluntário de Deus, como enunciado no hino dos Filipenses. “Nele, a uma profundidade inalcançável por qualquer psicologia e metafísica, nasceu a vontade de “esvaziar” a si mesmo (...) Assim, desceu, não somente na terra, como numa profundidade que nem mesmo conseguimos medir; uma profundidade e um vazio terrível, de que temos ideia somente se de fato entendermos do nosso interior o que é o pecado. É o esvaziamento de quem, sacrificando-se, espia, redime e começa novamente.”
Faz parte disso, de modo terrível, a não aceitação da vida de Jesus por parte de muitos dos seus contemporâneos. O seu sacrifício busca um admirabile commercium: “O senhor paga por seus servos.” Isso significa renúncia de Deus à própria divindade, para reabrir a relação originária: ser com, ao invés de ser eu, viver a existência como dádiva e não como propriedade. A cruz, formulada do ponto de vista do mundo culpado, é: renúncia à vida própria “mortal”; esquecimento de si, sem medo: vida na proexistência, cura das relações aniquiladoras e malignas do indivíduo, a nova troca comunicativa de dádivas – dádiva e restituição recíproca da vida, na “alegre troca” do agradecimento a Deus entre marido e mulher, entre irmãos e entre as criaturas; viver a vida como relação, da “pura dádiva” da origem divina e do outro homem.
É preciso notar, naturalmente, o quanto deve ter sido terrível a renúncia do Filho à sua filiação, como Balthasar disse com palavras apaixonadas: “Assim, decidi dar-me, abandonar-me. A quem? Não importa. Ao pecado, ao mundo, a todos, à Satanás, à Igreja, ao reino dos céus, ao Pai... ser o sacrificado por antonomásia. O corpo no qual os abutres se reuniam. O devorado, comido, bebido, sepultado, despejado. A bola do jogo. O explorado. O exprimido, o pisado até o infinito, o atropelado, rarefeito como ar, o arrastado pela multidão no oceano. O enfraquecido (...) até Deus era enfraquecido em mim.” Peccatum factum pro nobis chama-se o inimaginável drama segundo as palavras de Paulo (Cor 5:21), lacônico, terrificante e consolador ao mesmo tempo.
De fato é consolador: “O amor expulsa qualquer medo. Não fica nem mesmo as cinzas da minha culpa pelo rio de amor que devora tudo”. Numa experiência desse tipo, a culpa angustiosa se torna feliz: encontra quem a libera. “Onda após onda, marés de água e de sangue irrompem em ti inexoravelmente, para sempre, (...), derramam-se nos desertos da culpa, desmesuradamente enriquecedoras, superando a capacidade de acolher, demasiadamente abundantes para cada desejo.”
4.4 Vida em abundância: No mundo, não do mundo
O “sabor da graça” significa o puro dom da (nova) vida em abundância sem obrigação de restituição; “Eu vim para que as ovelhas tenham vida e a tenham plenamente” (Jo 10,10). A filosofia do “puro dom” acrescenta à ideia da mera lógica da troca o elemento novo determinante da transformação cristã do mundo. Assim, é introduzida uma nova imagem de Deus; da “vida em abundância” é possível reconhecer a imperfeição do mundo, da cultura em geral, que se baseia essencialmente na troca, mas não na partilha incondicionada. O dom deve ser “superpartilhado”, deve ser derramado além do que desejamos e esperamos; segundo o paradigma de Jesus, é o supérfluo, pura “benevolência”, alegria no dar. “E se alguém o forçar a caminhar com ele uma milha, vá com ele duas; ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa” (Mt 5:40) Esse novo modo de ser bom pode ser “transposto” no mundo social, para verificar e reelaborar mais uma vez a justiça da troca. Então, como correção essencial da frase do ut des, teremos uma outra: “dá, porque te foi dado.” Assim, a restituição precisa transformar-se em um comportamento de livre doação, altruística. O exemplo mais claro é constituído pelo amor. Não se pode comparar com a justiça, existe somente porque de ambas as partes não é devido, é concedido livremente. A superabundância deriva da liberdade de conceder como doação de si: “Quem crer em mim, do seu interior fluirão rios de água viva.” (Jo 7:38)
4.5 Superação no mundo do medo da morte
Mais uma última consequência: a superação do mundo deve superar também a morte e o decorrente medo da caducidade da carne. Somente o Cristianismo conseguiu formular frases, diferentemente da caixa de ressonância da antiga filosofia, em que a carne torna-se perno: caro cardo, ou: carne carnem liberans: “Ele liberta a carne através da carne.”
Segundo o Cristianismo, Deus não se encarna simplesmente como força do Es, como potência mágica, como dinâmica mítica, mas faz-se homem. Nessa carne realiza-se algo inaudito, cumprimento daquilo que fora anunciado, ou seja, a sua ressurreição da morte. Jó (13:15) lançava já o próprio coração além do muro do medo da morte: “Embora ele me mate, ainda assim esperarei nele.” A superação do medo de morrer reside nessa libertação da vida.
Cristamente, o fim inevitável do homem torna-se cumprimento. Cumprimento significa, de fato: abolição da morte, como consequência do desenvolvimento agressivo de tudo. O criado é libertado de modo permanente, “a própria criação espera ser libertada da escravatura, da corrupção, para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus”. (Rm 8, 20sg) Doxa, a glória dos homens, tornar-se-á visível pela primeira vez, na pessoa à imagem e semelhança do Criador sem pecado e sem morte.
Essa grande escatologia compreende tudo, libera tudo e as cartas dos apóstolos não têm termo mais apropriado para isso do que doxa, glória. O apocalipse indica esse mesmo conceito na imagem da cidade resplandecente, perfeita. É comovente e faz refletir o fato de que o fim de cada esperança é anunciado em imagens mutáveis de pura beleza – a beleza é o fim das vias do Senhor. Contudo, a beleza é somente um reflexo do que é realmente grande: a superação da morte. Ali reside a concreção máxima da esperança: “No Deus que dá a vida aos mortos e chama para a existência as coisas que ainda não existem”, pode-se ter “fé contra qualquer esperança” (Rm 4, 13f).
5. No mundo, não do mundo
As grandes verdades religiosas – por sua grandeza – necessitam de uma passagem chocante através de medos e resistências. Mais tarde virá a consolação, somente então quem sofreu saberá o que sabe.
A concepção cristã do mundo pode falar se se sabe do que se fala: do homem totalmente espantado, carente de redenção e redentor. O Cristianismo pode sustentar a sua diferença em relação às outras religiões humildemente, não de modo presunçoso, mas edificante. Tem a vantagem de afirmar a vida, a atual e a futura, de não ver uma extinção como objetivo da vida (o que obscureceria asceticamente também esta vida). O seu conteúdo é uma imagem, uma pessoa: a imagem do Filho, sua imersão na dor humana e a transformação profetizada de tudo numa felicidade resplandecente. Nihil humani alienum, nada do que é humano lhe é estranho.
Assim pode haver – com pessoas de religiões diferentes – uma comum atenção para o criado, para a dignidade do corpo e a luta contra medos agressivos de todo tipo, pode-se também calar e perceber a paz que nasce do nosso interior, uma purificação geral da excitação exagerada – no entanto, para o cristão estes são somente degraus de uma escada, que não leva simplesmente para uma natureza divina, para um si divino, para um divino único ou para o nada, mas para a imagem de Deus vivente. Que é uma imagem humana encantadora. Não se pode determinar a priori, mas nem mesmo excluir quantos os degraus da escada de outras posições espirituais se aproximem do mistério de Cristo. Mas respirar significa já adorar? A admirável eliminação da dor, de que são capazes os iogues, é de fato uma alegria? O ser Buda é realmente o mesmo que a plenitude da vida de que fala o Sermão Montanha?
No Sermão da Montanha o ser humano não se anula, é consolado. Ao invés do esvaziamento definitivo, a Escritura promete elevação. Deus não é o aniquilador que nos priva, mas Aquele que completa a identidade. Também a “carne”, que em todas as culturas simboliza fugacidade e decomposição, é transformada em um “corpo privado de dores”. A ressurreição de Jesus, em que no seu corpo transfigurado conserva todas as feridas do suplício, é testemunho da conservação e transfiguração de tudo o que na terra é rompido, ferido e descuidado. Essa doutrina não ensina o medo, ao contrário, é fundamentalmente superação de cada defesa. “Apeguemo-nos com firmeza à esperança que professamos, pois aquele que prometeu é fiel.” (Hb 10: 23)
Então nos perguntamos: é imaginável uma vida de plenitude sem medo nem avidez? Existe uma via para o poder que substitua a nossa obsessão por nós mesmos com a vida de Deus: A nova melodia da existência chama-se gratuidade e com amor, não mais devorar e ser devorado. Na água do batismo o nosso temeroso isolamento acaba sendo inundado, submerso na vida originária que flui. Deus é relação, ardente dom de si. Responde à sede de viver espontaneamente, de modo superior, com a mão aberta (como sabemos, também com o coração aberto). Claro, não nos livramos de repente do medo, devemos tentar muitas vezes antes de nos deixar absolver por Ele. “Eu conto comigo, meu Deus, mas tu, tu tens o direito de abrir mão de mim.” (Rilke) A fé elimina o agarramento natural em si mesmo e concede a vida a cada um em abundância. A alegre troca: “De graça recebestes, de graça daí.” (Mt 10:8)
6. A tríplice recomendação do Evangelho na experiência de Hildegard von Bingen
Quem recebe a vida nova sem receio pode abandonar a tríplice avidez na luta contra o “mundo”: a luta pela riqueza, pelo sexo (como simples satisfação de uma pulsão), pelo poder.
O Evangelho recomenda transformar a agressão em força:
- Através da pobreza; para ter maior desenvoltura interior: saber receber sempre em superabundância;
- mediante a castidade: casto vem de conscius = cônscio; e, portanto, castidade significa: saber a quem se ama, alcançando a castidade por amor a Ele;
- mediante a obediência; conseguir ouvir a voz da autoridade: é esta a voz que me “faz crescer” (augere); ao invés de ser escravo dos meus humores.
O que na verdade contrasta demasiadamente com a natureza? Confiemos na experiência de Hildegard von Bingen, que sendo beneditina seguiu essa tríplice recomendação: “Se o ser humano segue o que é justo, abandona-se a si mesmo, atinge a força e bebe. Não o faz forçado, como quem bebe e enche as veias de vinho. Nunca será excessivo, como um embriagado de vinho que perde o controle e não sabe o que faz. Desse modo, os justos amam a Deus, em quem não há desgosto, mas só felicidade duradoura.”
O empenho é este: renunciar-se a si mesmos, mas de forma feliz. Existe um nome, o único que tem esse vinho para oferecer: Christus medicus. De fato, a vida é destinada à alegria e à saúde, não à infelicidade. “O amor assim realizou a sua obra, gradualmente, mas de modo claro e determinado, a fim de que não permaneça nenhum ponto fraco, mas que haja abundância.” “Se alguém com triunfante submissão se submete a Deus e supera Satanás, se erguerá e gozará da beatitude da proteção divina. E se, no ardor pelo Espírito Santo, eleva o seu coração e dirige o olhar para Deus, então aparecerão, em luminosa clareza, os espíritos beatos e oferecerão a Deus o teu coração.”
Sob essa proteção, o homem se erguerá, viverá e alongará o passo. A vontade de Deus, então, transforma-se em movimento. “N’Ele encontro a riqueza das forças de Deus, de modo que subo confiante de força em força.” E esta é uma antiga experiência, um serviço que não abala, mas reforça. Quem é tocado por Deus não é escravo, mas livre. “Como são belos os teus olhos, quando proclamam coisas divinas.” É um retorno à casa, não somente em direção a Ele, mas em direção de si mesmos – e é também libertação do mundo. “Se o homem abre o seu coração para Deus e o torna luminoso, rejuvenescerá tudo o que é árido. Grão e vinho crescem graças a essa força misteriosa.” Também o grão e o vinho do teu coração. E não é conhecimento teórico ou mística sonhadora, mas é vida de todos os dias e pode ser verificada no quotidiano. Ocorre algo surpreendente: algo novo, e não alguém novo, ocupou o centro do pensamento e da ação e o espírito pesado descarrega seu peso, sendo maior do que antes. “Oh, espírito ardente, louvado seja! [...] De ti arde o coração dos homens. E o peito abraça todas as forças do espírito. Daqui surge a vontade e dá ao espírito o seu bom sabor.” A segurança com que Hildegard descreve a atração exercida por Deus traz a marca da verdade: dá força a uma outra parte e para esta pode abundar, mesmo sangrando as feridas. “Do coração nasce a cura, quando se entrevê a alvorada de um novo início. Não é possível descrever como esse novo desejo de Deus começa e com que fervor se manifesta no nosso mundo.” “E assim, o homem, abrigo dos Seus milagres, o reconhece com os olhos da fé e o abraça com o beijo do saber.” Sim, o homem instintivamente tem propensão para o beijo e o abraço: recebe-os constantemente e transmite-os alegremente.
Isso significa estar no mundo, mas não ser do mundo.
COMO ESTAR AO SERVIÇO DA IGREJA COMO LEIGOS E ENQUANTO LEIGOS?
Pierre Langeron
Senhor Cardeal, Monsenhor, cara Ewa, caro(a)s amigo (a)s,
Por ocasião do Pentecostes, o jornal católico francês La Croix publicou um dossier sobre o tema: «Esses leigos que fazem funcionar a Igreja». E sob o título, na primeira página, uma fotografia muito grande, com a seguinte legenda: uma senhora de idade, que há 25 anos prepara um lindo ramo de flores diante do altar de uma igreja vazia ... Choque das fotos. É esta já a resposta à questão que nos é colocada esta tarde ? É este o serviço que a Igreja espera dos leigos ?
Arrisquemos o absurdo: podemos imaginar uma Igreja sem leigos? Há alguns anos em Florença, na Galeria dos Ofícios, captou a minha atenção um pequeno quadro medieval, cujo título era mais ou menos este: a cidade ideal. Via-se uma amena aldeia com as suas casas e a sua igreja, num campo tranquilo; homens e mulheres ocupados nas atividades ordinárias da cidade terrestre: trabalhadores nos campos, artesãos nas suas oficinas, mulheres na cozinha. Tudo respirava serenidade e harmonia, numa doce luz dourada. Um belo quadro, sim; uma cidade plenamente cristã, como uma conclusão. Só uma pequena precisão: só tinha monges e religiosas... Que imagem singular duma Igreja... sem leigos, e sem posteridade! Ora, uma Igreja sem leigos, seria como uma escola sem alunos, ou um hospital sem doentes.
Pondo de lado esta ilusão simbólica de um artista da Idade Média, retornemos a esta evidência: há leigos na Igreja. E visto que se trata de examinar como os leigos podem servir a Igreja enquanto tal, comecemos por observar a nossa assembleia. É quase exclusivamente composta por leigos. Sim, os membros dos Institutos seculares são e permanecem leigos. Recordo com prazer a excelente fórmula do nosso velho amigo Monsenhor Dorronsoro: «plenamente leigos e plenamente consagrados ». Nem somos leigos apenas em parte, nem somos consagrados apenas em parte. É a grande «revolução» de Provida Mater, para retomar as palavras do P. Beyer. De facto, até então, um leigo que se empenhasse na vida consagrada deixava o estado leigo e tornava-se religioso; não se podia ser leigo e consagrado, ou se era um, ou o outro. Desde 1947, que nos nossos Institutos já é possível ser cumulativamente leigo e consagrado, empenhar-se na vida consagrada sem deixar o estado leigo. Paulo VI falava “da dupla realidade da nossa configuração”. 100% Leigo e 100% consagrado; é a maravilha da nossa vocação, e que nos perdoem os matemáticos! Ser leigo não é só uma maneira de viver, como um religioso que exercesse um ofício secular e vivesse nas condições ordinárias do mundo. Paulo VI explicava: «a vossa condição existencial e sociológica torna-se a vossa realidade teológica e a vossa via para realizar a salvação.»². Nós somos plenamente leigos e plenamente consagrados. Não é certo que na Igreja, nas nossas paróquias, e talvez mesmo nos nossos Institutos, esta verdade ontológica seja sempre bem compreendida, nem mesmo bem vivida por alguns dos nossos membros.
Acumular dois estados de vida não é, aliás, uma novidade na Igreja: é evidente para todos, e há muito tempo, que um padre que se empenha na vida consagrada permanece plenamente padre, tornando-se plenamente franciscano, jesuita ou oblato de Maria Imaculada. Apresento como testemunho os padres presentes na nossa assembleia. Eles são membros de Institutos seculares clericais; são plenamente padres e plenamente consagrados: a sua consagração em nada diminui o seu estado clerical.
Depois de ter recordado brevemente estes poucos dados da nossa vocação, podemos abordar o âmago do nosso tema: «Como estar ao serviço da Igreja como leigos e enquanto leigos?». A matéria é imensa, e eu não sou nem teólogo, nem historiador, nem sociólogo, mas somente jurista, professor de direito público na Universidade d'Aix-Marseille na França, muito empenhado na minha Universidade, mas também nas paróquias, na minha diocese e em obras sociais ou educativas da Igreja. Vivi também, como uma grande graça, a minha participação de 9 anos no Bureau da Conferência nacional dos Institutos seculares de França, lugar de comunhão fraterna e de intercâmbios construtivos, e órgão motor de numerosas realizações ao serviço dos nossos Institutos.
O nosso tema é como uma grande montanha: podemos fotografá-la sob muitos aspectos sem jamais a esgotar. Os nossos precedentes Congressos desenvolveram amplamente alguns desses aspectos, como a presença no mundo e a secularidade. Além disso, eu tenho em conta as outras conferências sobre o tema geral do nosso Congresso: «À escuta de Deus nas sendas da história: a secularidade fala à consagração». Gostaria também simplesmente, no tempo que me é dado, e para não esgotar a vossa atenção nesta quente tarde de verão, de analisar detalhadamente convosco alguns pontos que, no contexto atual, parecem merecer uma atenção especial e maior clareza. Vou agrupá-los à volta de dois eixos simples : os leigos e a Igreja em primeiro lugar, os leigos e a missão da Igreja em segundo, referindo-me sobretudo aos ensinamentos do Concílio Vaticano II, cujo 50º aniversário festejamos com júbilo.
I - Os Leigos e a Igreja
Eu centraria o primeiro ponto desta conferência sobre a Igreja, e o lugar dos leigos na Igreja. Eu não sou um teólogo; por conseguinte não me vou arriscar a fazer análises teóricas que ultrapassariam amplamente as minhas competências, limitar-me-ei a alguns textos essenciais do Concílio Vaticano II.
Para compreender como os leigos são chamados a servir a Igreja, devemos ver uma questão prévia e fundamental: como servimos a Igreja: do interior, ou do exterior? Ou mais precisamente, qual é o nosso lugar exato de leigos em relação à Igreja? Somos somente utilizadores exteriores de serviços espirituais e materiais que nos oferece a Igreja? Ou somos atores na Igreja, damos uma contribuição específica? Para melhor responder a esta questão, proponho-vos desenvolver a nossa reflexão em quatro tempos.
Que significa para um leigo: servir a Igreja enquanto leigo ?
Para bem compreender a questão, comecemos logicamente por nos interrogarmos sobre o que significa o termo « serviço ». O que nos ensina a etimologia ?
A palavra service em francês, service em inglês, servizio em italiano ou ainda servicio em espanhol, vem do latim «servus», que significava: escravo. O aspecto passivo é muito claro: servir é obedecer. O alemão também está próximo, mas com uma etimologia diferente: Dienst e bedienen. Atualmente, esta significação original é utilizada na linguagem corrente: fala-se muito naturalmente do pessoal de serviço, de uma entrada de serviço, da qualidade do serviço num restaurante, ou ainda do «serviço militar» ( Wehrpflicht em alemão, com ainda mais a dimensão moral do dever a realizar). Nesta primeira perspectiva, o leigo ao serviço da Igreja aparece, em primeiro lugar, como aquele que obedece às autoridades da Igreja.
Continuemos a análise da palavra «serviço». O termo servus foi enriquecido com um sentido novo, como muitos outros, nos tempos do império romano de Oriente, que se tornou oficialmente cristão depois do édito de Tessalónica em 380. Como o Imperium se tornou ministerium (daí o qualificativo de ministérios na Igreja, por exemplo), igualmente o servitium se tornou uma função, uma responsabilidade ao serviço dos outros.
Hoje, por exemplo, falar-se-á sem equívoco do serviço público: do da educação, da saúde, dos transportes, etc.; serviço público significa antes de tudo serviço do próprio público embora, infelizmente, nem sempre seja verdade na prática! Nesta segunda perspectiva, o leigo ao serviço da Igreja assume uma função ativa em prol dos outros membros da comunidade dos crentes. A palavra «serviço» tem, portanto, dois significados, que é necessário conhecer e distinguir. Tomemos o exemplo de uma escola: as crianças e os seus pais são habitualmente consumidores da formação dada e dos serviços oferecidos. Mas em certos países e certas culturas, os pais e as autoridades locais, por vezes também as crianças, são também os atores da escola, associados às escolhas pedagógicas, culturais e até económicas. Trata-se menos de uma partilha da autoridade e mais de uma participação no seu exercício, com uma contribuição específica.
Os leigos e a estrutura da Igreja
Num segundo momento da nossa reflexão, e partindo dos dois sentidos da palavra «serviço», perguntamo-nos o que é a Igreja que os leigos são chamados a servir enquanto leigos.
Na constituição dogmática Lumen Gentium, a Igreja é, em primeiro lugar, apresentada como um mistério, que algumas imagens podem ajudar a ilustrar: construção, tempIo, curral, família, campo de Deus, etc. A Igreja é também apresentada como o povo de Deus, a multidão dos homens que creem em Cristo (Christifideles) e que foram batizados.
A Igreja é o Corpo místico de Cristo, uma comunidade espiritual de fé, de esperança e de caridade. Mas ela é também uma assembleia visível, uma sociedade organizada segundo um princípio hierárquico : «Cristo, Nosso Senhor, para garantir ao povo de Deus os pastores e os meios para o seu crescimento, instituiu na sua Igreja vários ministérios para o bem de todo o corpo ( ...), para que todos aqueles que pertencem ao povo de Deus ( ...) alcancem a salvação ( ...). »
Encontramos aqui o aspeto mais conhecido e mais visível da Igreja-instituição: a distinção dos clérigos e dos leigos. Todos sabemos que o conjunto dos clérigos está estruturado em três níveis: em primeiro lugar o colégio dos bispos, com no topo o Papa; depois os padres, que são os colaboradores dos bispos no exercício do seu cargo; e enfim os diáconos. Todos os outros membros da Igreja são leigos. Ou se é clérigo, ou se é leigo: sive clericos, sive leigos, segundo a fórmula tradicional. Um leigo é aquele que não é clérigo. Esta definição negativa do leigo justifica uma certa visão clerical da Igreja, que marcou séculos da nossa história: a Igreja são em primeiro lugar e sobretudo os clérigos. A linguagem corrente conservou, aliás, numerosos vestígios disso: em francês por exemplo, ainda se fala correntemente da «gente de Igreja» ou dos «bens da Igreja ». E em certa assembleias dominicais, a oração universal menciona normalmente a Igreja e os seus pastores, e depois os fiéis - como se os fiéis não fossem também a Igreja.
Esta abordagem institucional gerou uma estranha visão da Igreja, a imagem de uma construção original. Em primeiro lugar, uma pirâmide, bem estruturada, com os três níveis que citamos precedentemente. Por baixo dessa piramide e diferente dela, a massa informe de fiéis. Por fim e ao lado, numa situação um pouco complexa, o conjunto das religiosas e religiosos. Daí esse lugar dos leigos na Igreja, que um Papa tinha claramente resumido : «Ninguém pode ignorar que a Igreja é uma sociedade desigual, na qual Deus destinou uns a comandar, e os outros a obedecer. Os primeiros são os clérigos, e os segundos os leigos. » Esta frase é de Gregório XVI, em meados do século XIX. Exprime bem, para os leigos, o primeiro sentido da palavra «serviço» que nós analisámos: servir, é obedecer.
Nesta lógica, o serviço dos leigos reduz-se ao serviço da instituição Igreja; o que muitos sociólogos denominaram o clericalismo. Desde a Idade Média ocidental, os próprios papas reinvendicaram esta autoridade primária dos clérigos sobre os leigos e sobre toda a sociedade civil. A melhor ilustração foi fornecida pela “teoria dos dois gládios”, em parte inspirada por São Bernardo : «Na Igreja e no seu poder, há dois gládios ( i.e. dois poderes), o espiritual e o temporal. Os dois são o poder da Igreja. O primeiro deve ser utilizado pela Igreja, e o segundo para a Igreja. Um pela mão do padre, e o outro pela mão do rei e do soldado, mas com o acordo e sob ordem do padre.» Estas palavras muito oficiais do Papa Bonifácio VIII, no início do século XIV, ilustram esta vontade e frequentemente esta prática da Igreja de exercer o seu poder sobre a sociedade temporal e a atividade dos leigos. Aqui, a noção de obediência é primordial, a atividade dos leigos só pode ser exercida no quadro e sob a autoridade dos clérigos.
Na filosofia política, esta abordagem medieval foi apelidada de «augustinismo político” em referência a Santo Agostinho é claro, ou mais simplesmente de «sacerdotalismo». Esta imbuiu fortemente a nossa história e a nossa cultura no Ocidente, talvez mesmo até aos nossos dias. Eis alguns exemplos :
- durante a Idade Média, os papas faziam e desfaziam os reis e os imperadores; a história da Alemanha ou da Sicília, por exemplo, foram profundamente marcadas por isto;
- entre os erros enunciados, em 1864, pelo bem-aventurado Papa Pio IX no célebre Sílabo: toda a separação da Igreja e do Estado é condenada, porque a Igreja perderia então o seu poder e a sua influência sobre o estado (nº 55);
- a sociedade quebequense viveu durante muito tempo na estreita dependência do clero, até mesmo nas questões estritamente pessoais e familiares; este longo período hoje é por vezes criticado como «o tempo da grande escuridão» ;
- na Itália do pós-guerra, caraterizada pela existência de dois grandes grandes partidos, a Democracia Cristã e o Partido Comunista, os bispos não hesitavam em esclarecer os
seus fiéis recordando-lhes com insistência, no momento das eleições, que eles estavam numa democracia e que eram cristãos …; - por fim devemos recordar que o encargo da catequese manteve-se, durante muito tempo, como monopólio dos clérigos e das religiosas, os leigos não eram considerados seguros, mesmo que fossem bem formados.
Poder-se-ia ainda acrescentar que hoje, em alguns países de velha cristandade onde a importância da Igreja continua a diminuir, constata-se como um retorno desse clericalismo. Para alguns jovens padres, por exemplo, é uma resposta compreensível à necessidade de reforçar uma identidade ameaçada. Para outros, por vezes , alimenta a esperança de um retorno a uma pirâmide da autoridade, onde os leigos tornariam a ser novamente fiéis executantes.
Observar-se-á enfim que essa visão clerical da Igreja foi implementada em modo diferente nos países onde o Cristianismo se implantou mais tardiamente. Frequentemente os Missionários ocidentais levaram-na consigo por convicção, ou por necessidade. Contrariamente, por vezes são os leigos que mais levaram a chama da Igreja, como na Coreia ou no Japão.
Seja como fôr, uma das primeiras tarefas dos leigos continua a ser a de se empenharem nas diversas atividades das suas paróquias, das suas dioceses e dos seus movimentos. Mas esse serviço é o único e o mais importante para um leigo ?
Os leigos e a Igreja segundo o Concílio Vaticano II
No início recordamos os dois sentidos palavra serviço, e agora acabamos de ver uma ilustração redutora da mesma. Consideremos agora a verdadeira eclesiologia que o Concílio nos recorda com clareza. De facto, na Lumen Gentium, o princípio da constituição hierárquica da Igreja é, está claro, recordado, mas é esclarecido, interpretado, como uma comunhão de serviços entre os cIérigos e os leigos. Por um lado «os ministros que têm o poder sagrado servem os seus irmãos » . Por outro, os leigos estão ao serviço de toda a Igreja: «Os sagrados pastores devem reconhecer e fomentar a dignidade e a responsabilidade dos leigos na Igreja, entreguem-lhes confiadamente cargos em serviço da Igreja, dêem-lhes margem margem e liberdade de ação necessárias ( ... )». A pirâmide subsiste com certeza; mas doravante inscreve-se num círculo de relações e de serviços recíprocos.
O bem-aventurado João Paulo II desenvolveu claramente esta imagem da Igreja-comunhão na sua Exortação sobre os Leigos: «A comunhão eclesial configura-se, mais precisamente, como uma comunhão «orgânica», análoga à de um corpo vivo e operante: ela, de facto, caracteriza-se pela presença simultânea da diversidade e da complementariedade das vocações e condições de vida, dos ministérios, carismas e responsabilidades. Graças a essa diversidade e complementariedade, cada fiel leigo encontra-se em relação com todo o corpo e dá-lhe o seu próprio contributo. »
Para nós, Institutos seculares, Paulo VI comentava também : «Os institutos seculares devem ser enquadrados na perspectiva que o Concílio do Vaticano definiu para apresentar a Igreja: como uma realidade viva, visível e espiritual no seu conjunto, ( ... ) composta por muitos membros e órgãos diversos, mas intimamente unidos e comunicantes entre si, participante na mesma fé, na mesma vida, na mesma missão, na mesma responsabilidade, e todavia distinguidos por um dom, um carisma particular do Espírito vivificador ( ... ). »
A esta comunhão das vocações e dos serviços, Lumen Gentium acrescenta a igualdade de todos os fiéis de Cristo : « Um só é, pois, o Povo de Deus: ( ... ). Comum é a dignidade dos membros, pela regeneração em Cristo; comum a graça de filhos, comum a vocação à perfeição; ( ... ) reina entre todos uma verdadeira igualdade.»
Comunhão de serviços, igualdade de todos os fiéis ; continua a ser a missão da Igreja. O decreto conciliar sobre o Apostolado dos leigos explica: «Existe na Igreja diversidade de funções, mas unidade de missão. Aos Apóstolos e seus sucessores, confiou Cristo a missão de ensinar, santificar e governar em seu nome e com o seu poder. Mas os leigos, dado que são participantes do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, têm um papel próprio a desempenhar na missão do inteiro Povo de Deus, na Igreja e no mundo.» Os leigos são portanto, como os clérigos, plenamente ao serviço da missão da Igreja no mundo, cada um segundo o seu próprio estado. Voltaremos a este ponto na segunda parte desta conferência.
Uma última observação sobre esta relação entre os diversos membros da Igreja. Devemos reconhecer que a eclesiologia renovada de Vaticano II gerou, por sua vez, excessos, numa direção oposta aos excessos precedentes. Esquecendo-se da estrutura hierárquica da Igreja, ou minimizando-a, certos leigos laicizaram, em qualquer medida, toda a Igreja, e chegaram até a afirmar, na Áustria por exemplo : «wir sind die Kirche», traduzo: nós, os leigos, somos a Igreja. Uma tal reivindicação também é totalmente errónea: não há igreja sem clérigos! Com muita subtileza e habilidade, o Santo Padre Bento XVI respondeu durante a sua última viagem à Alemanha: «wir alle sind die Kirche»; traduzo: todos nós, somos a Igreja, leigos e clérigos! A um nível mais modesto, podemos encontrar a mesma deriva em certas paróquias; eu conheço algumas em França, onde o padre não decide nada sem o acordo dos leigos: é toda a comunidade que exerce a responsabilidade pastoral e material. Devemos admitir que a grave penúria das vocações sacerdotais encoraja, por vezes, estas soluções alternativas. Existem também paróquias e dioceses imensas em alguns continentes, com muito poucos padres: pode-se compreender a tomada de maiores responsabilidades pastorais pelos leigos, e também por membros de Institutos seculares. Devemos inquietar-nos muito com essas práticas? Existe na sociologia uma lei do bom senso, a lei do pêndulo: um movimento excessivo num sentido pode gerar um movimento quase também excessivo no outro sentido; com o tempo, o pêndulo aproxima-se pouco a pouco do equilíbrio. Talvez até seja necessário esse movimento inverso para evitar de retroceder demasiado.
A tria munera
Para bem comprender o lugar e o serviço dos leigos na Igreja, resta-nos ver um aspeto essencial que os especialistas denominam: a tria munera. Pelo seu batismo, de facto, os leigos participam na tripla função de Cristo e da Igreja: função sacerdotal, função profética e função real. 14 Em que modo? O Concílio Vaticano II e a Exortação de João Paulo II sobre os Leigos especificam-no :
- A função sacerdotal; «Pois todos os trabalhos dos leigos, orações e empreendimentos apostólicos, a vida conjugal e familiar, o trabalho de cada dia, o descanso do espírito e do corpo, se forem feitos no Espírito, e as próprias incomodidades da vida, suportadas com paciência, se tornam em outros tantos sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo; sacrifícios estes que são piedosamente oferecidos ao Pai, juntamente com a oblação do corpo do Senhor, na celebração da Eucaristia. E deste modo, os leigos, agindo em toda a parte santamente, como adoradores, consagram a Deus o próprio mundo. » Vejamos as três componentes: posição central da Eucaristia, dimensão espiritual de toda a vida ordinária, e por fim consecratio mundi, a consagração do mundo; este conceito-chave ilumina toda a nossa vida e a nossa missão de leigos na Igreja; infelizmente é pouco conhecido e nem sempre bem compreendido. Para nós, membros dos Institutos seculares, Paulo VI dizia: «Um domínio imenso será aberto à vossa dupla missão: por um lado a vossa santificação pessoal, quer dizer a vossa alma, e por outro a consecratio mundi, tarefa muito delicada e atraente, como vocês bem sabem, quer dizer o mundo dos homens tal como é, com a sua actualidade inquieta e deslumbrante, com as suas virtudes e as suas paixões, com as suas possibilidades de bem e a sua atração para o mal. »
- A função profética: os leigos exercem em primeiro lugar através do testemunho da sua vida, « a fim de que a força do Evangelho resplandeça na vida quotidiana, familiar e social ». Exercem também através da palavra, perante a sua família, no seu ambiente de trabalho e nos seus diversos compromissos sociais e pastorais; é assim que os leigos podem plenamente participar nas atividades de catequese, desde que estejam suficientemente formados. Podem enfim assumir tarefas de acompanhamento espiritual, não sendo esta função reservada aos clérigos: basta pensar em todas as religiosas com responsabilidade nas suas congregações, mas também em leigos como Chiara Lubich na Itália,que deu origem aos Focolares, Marthe Robin na França, que deu origem aos Foyers de caridade, ou João Vanier no Canadá, fundador da comunidade l'Arche.
- A função real: compete aos leigos contribuir para estabelecer o reino de Deus no mundo. «Pela união das próprias forças, devem os leigos sanear as estruturas e condições do mundo, se elas porventura propendem a levar ao pecado, de tal modo que todas se conformem às normas da justiça e antes ajudem ao exercício das virtudes, do que o estorvem. Agindo assim, informarão de valor moral a cultura e as obras humanas. E, por este modo, o campo, isto é, o mundo ficará mais preparado para a semente da palavra divina e abrir-se-ão à Igreja mais amplamente as portas para introduzir no mundo a mensagem da paz. »
Para concluir este primeiro ponto sobre os leigos e a Igreja, é bom recordar que ser leigo, não é somente uma condição sociológica ou um simples estado de facto na Igreja. Em Christifideles laici, o Bem-aventurado João Paulo desenvolve uma magnífica teologia do laicado. Utilizando a parábula evangélica dos trabalhadores na vinha, de facto começa sublinhando que o estado leigo não é um estado por defeito (é leigo o que não é clérigo), mas um estado positivo no qual cada um é objeto dum chamamento particular por parte do Dono da Vinha: « todos são chamados a trabalhar na vinha ». Existe uma vocação laica, assim como uma vocação sacerdotal ou religiosa. Esta vocação, Deus dirigia-a a todos os leigos; mais uma vez é necessário conhecê-la, escutá-la e depois responder-lhe. Estamos bastante conscientes dessa vocação, mesmo nos nossos Institutos? Poderiamos mesmo sugerir que no seguimento do ano sacerdotal, que foi amplamente celebrado em 2009/2010, haja dentro em breve na Igreja universal um ano do laicado? Que acham? Este é um projeto que talvez os nossos Institutos possam apoiar...
II - Os leigos e a missão da Igreja
Após termos examinado o lugar e o estatuto dos leigos na Igreja, podemos, num segundo tempo da nossa reflexão comum, interrogarmo-nos sobre o papel dos leigos na missão da Igreja. Qual é a especificidade e o objeto da sua participação ? E qual é o alcance da sua responsabilidade ?
Mais uma vez, peço desculpa pela minha incompetência em matéria de teologia. Também, para exprimir simplesmente a missão de Cristo e da Igreja na sua amplidão universal e cósmica, limitar-me-ei a citar São Paulo: o Pai « Descobrindo-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si mesmo,
de tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos,» É o grande mistério da nossa fé cristã: a obra da redenção e da salvação.
A missão da Igreja
O Concílio explicita claramente essa missão de toda a Igreja: « A obra redentora de Cristo, que por natureza visa salvar os homens, compreende também a restauração de toda a ordem temporal. Daí que a missão da Igreja consiste não só em levar aos homens a mensagem e a graça de Cristo, mas também em penetrar e actuar com o espírito do Evangelho as realidades temporais.»
Este texto é essencial para o nosso tema. O número 5 é o ponto fulcral do Decreto sobre o Apostolado dos Leigos. Merece que o comentemos pormenorizadamente. Comecemos por analisar, juntos, a sua estrutura :
- Em primeiro lugar, um objetivo: a obra de redenção de Cristo; trata-se da dimensão teleológica, e até escatológica, da missão de Cristo e da Igreja; não um objetivo particular, mas um objetivo geral, global, essencial.
- Em seguida, e para atingir esse objetivo, duas vias complementares: a salvação dos homens por um lado, e a renovação da ordem temporal por outro; voltaremos a debruçar-nos em breve sobre este ponto.
- Enfim, duas séries de atores: o texto permite distinguir as respetivas responsabilidades dos clérigos e dos leigos: aos clérigos, em primeira instância, compete transmitir aos homens a mensagem de Cristo e a sua graça, através da pregação e dos sacramentos; aos leigos, em primeira instância, compete penetrar e perfazer a ordem temporal através do espírito evangélico.
Este mesmo texto permite-nos, em seguida, aprofundar o serviço que os leigos podem assumir na Igreja. Gostaria de retomar aqui três elementos úteis para a nossa reflexão.
1/ A missão comum de toda a Igreja: uma única missão, mas dois objetos distintos.
Os domínios e os meios são diferentes, mas têm um único fim. O decreto sobre o Apostolado dos Leigos especifica a esse respeito : « Estas ordens, embora distintas, estão de tal modo unidas no único desígnio divino que o próprio Deus pretende reintegrar, em Cristo, o universo inteiro, numa nova criatura, dum modo incoativo na terra, plenamente no último dia. »
De facto parece claro. Mas no tempo e no espaço, a missão da Igreja nem sempre foi compreendida desta maneira. No decurso dos últimos séculos por exemplo, a Igreja católica deparou-se com muita hostilidade: perseguições no Japão, no Vietname ou na China, a Revolução francesa, a Kulturkampf alemã, a guerra dos Cristeros no México, o anticlericalismo italiano, a guerra de Espanha, etc. A Igreja debruçou-se amiúde sobre si própria e sobre a sua missão espiritual: a liturgia, os sacramentos, a oração e as devoções, as peregrinações, a moral pessoal, familiar e sexual. Um grande jesuita, Michel de Certeau, falou mesmo duma «Igreja fora da história» - o que não era totalmente verdade nos países de missão.
Esta abordagem restritiva da vida cristã ainda existe. Atualmente, por exemplo, encontram-se, em vários continentes, numerosas populações muito crentes e praticantes, mas que por vezes reduzem a vida cristã a essa dimensão excessivamente espiritual e sacramental. Em Março passado, no avião que o levava ao México, o nosso Papa Bento XVI evocou esta situação. Com a grande coragem da verdade que o caracteriza, ousou classificá-la como esquizofrenia:
« Vê-se, na América Latina mas também noutras partes, em não poucos católicos, uma certa esquizofrenia entre moral individual e pública: pessoalmente, na esfera individual, são católicos, crentes, mas na vida pública seguem outros caminhos que não correspondem aos grandes valores do Evangelho, que são necessários para a fundação de uma sociedade justa. Por conseguinte, é preciso educar para superar esta esquizofrenia, educar não só para uma moral individual, mas para uma moral pública, e procuramos fazer isto com a Doutrina Social da Igreja. »
Permitam-me recordar aqui um exemplo mais pessoal. Um membro do meu Instituto é filipino. Trabalha em Manila numa grande empresa. Esta empresa um dia foi submetida a um controlo fiscal, e tinha que pagar uma multa muito avultada. O inspector disse-lhe muito claramente que podia “apagar” essa coima se ele lhe desse discretamente, em notas, uma soma a negociar. O inspector insistiu durante muito tempo; finalmente, enervou-se e disse: «temos que chegar a um acordo absolutamente antes das 17 horas, porque eu vou em seguida para a igreja para fazer o caminho da via crucis e para a missa” .... !
Para ajudar a precisar a missão da Igreja, e portanto a dos leigos, o Concílio retoma os temas de Santo Agostinho e recorda claramente essa «compenetração da cidade terrestre e da cidade celeste » : «Este divórcio entre a fé que professam e o comportamento quotidiano de muitos deve ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo. ( ... ) Não se oponham, pois, infundadamente, as actividades profissionais e sociais, por um lado, e a vida religiosa, por outro. O cristão que descuida os seus deveres temporais, falta aos seus deveres para com o próximo e até para com o próprio Deus . ( ... ) » . O texto encoraja em seguida ao cristãos a uma síntese vital entre os dois domínios, espiritual e temporal. A Igreja e sua missão só se podem compreender na perspectiva da Encamação.
2/ A salvação dos homens: por de trás da banalidade aparente desta expressão bem conhecida, há uma grande verdade que o Concílio trouxe de novo para a luz.
De facto, até então, era habitual na Igreja falar-se mais das almas do que dos homens. Já tinham notado esta pequena diferença nas palavras? Ontem, dizia-se, naturalmente, que era necessário salvar as almas, conduzir as almas a Deus, etc. Depois do Concílio Vaticano II, a Igreja fala sobretudo dos homens. Porque é toda a antropologia cristã que está em causa nesta questão de vocabulário. A Igreja recorda com força que o homem é «um ser uno, composto de corpo e alma». Foi talvez o bem-aventurado João Paulo II que melhor exprimiu esse mistério, com a força e a potência habituais das suas fórmulas. Desde a sua primeira encíclica, Redemptor hominis, ele martela num único parágrafo : «o homem real, « concreto », « histórico ». O homem todo inteiro, todos os homens, o homem na sua plena dimensão, em toda a sua verdade, na sua realidade humana, é este homem assim que é a via da Igreja »
Para bem medir a amplitude desta observação, gostaria de relembrar dois exemplos um pouco extremos, mas precisamente por essa razão, muito reveladores. Há alguns anos numa revista católica, descobri a atividade duma congregação missionária em Calcutá, em finais do século XIX, cuja missão principal era batizar as crianças que morriam nas ruas. Os relatórios redigidos para a Casa Generalícia mencionavam regularmente o número de crianças que tinham sido enviadas para o Paraíso. Sim, as almas tinham sido salvas. Mas eu pergunto-me se não teria sido necessário salvar primeiro os corpos e nutrir essas crianças. Um século depois, a bem-aventurada Madre Teresa não procurava batizar todos os moribundos que acolhia; ela tratava-os em Kalighat.
Segundo exemplo extremo. Não há muito tempo atrás, na capelania universitária para
a qual eu trabalho há mais de 25 anos, um estudante muito crente afirmava a sua posição relativamente aos jovens atingidos pela SIDA : «Eles pecaram, que se confessem, e tanto pior se morrerem: a sua alma será salva ». Palavras terríveis de alguém que está fechado nas próprias convicções, e que cortam como a lâmina de uma faca.
É, portanto, este “o homem, todos os homens” para retomar a célebre fórmula de Paulo VI, que a Igreja deve ter em conta e que é o objeto da sua missão e da sua caridade pastoral.
3/Perfazer a ordem temporal mediante o espírito evangélico: o texto que comentamos indica 3 domínios para a missão da Igreja :
- difundir a graça de Cristo: por meio principal dos sacramentos, essa participação no cargo sacerdotal de Cristo cabe evidentemente aos clérigos;
- levar aos homens a mensagem de Cristo: esta participação no cargo profético de Cristo é partilhada entre os clérigos e os leigos ;
- renovar toda a ordem temporal, penetrar e perfazer a ordem temporal pelo espírito evangélico: esta participação no cargo real de Cristo cabe quase exclusivamento aos leigos. Este último ponto vai alimentar ainda a nossa reflexão; merece por sua vez alguns desenvolvimentos.
O Concílio explica: «Quanto aos leigos, devem eles assumir como encargo próprio seu essa edificação da ordem temporal ( ...) Todas as realidades que constituem a ordem temporal - os bens da vida e da família, a cultura, os bens económicos, as instituições internacionais e outras semelhantes, bem como a sua evolução e progresso - não só são meios para o fim último do homem, mas possuem valor próprio, que lhes vem de Deus. »
Para Deus, para a Igreja e para cada um de nós, o mundo tem, portanto, um valor próprio. Estamos suficientemente conscientes deste ponto? Demasiadas vezes o mundo era visto em modo negativo pela Igreja, como o reino do demónio e do pecado: « Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós, me odiou a mim.
Não sois do mundo, por isso é que o mundo vos odeia. ( ... ) o princípe deste mundo está julgado. » Era esquecer que o próprio São João também nos diz: « Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele.»
Desde a sua introdução, Gaudium e spes convida-nos a esta visão grandiosa e magnífica do mundo que reconcilia estes dois aspetos : «Tem, portanto, diante dos olhos o mundo (o Concílio) que é o mundo dos homens, ou seja a inteira família humana, com todas as realidades no meio das quais vive; ( ...) caíu, sem dúvida, sob a escravidão do pecado, mas libertado pela cruz e ressurreição de Cristo, venceu o poder do maligno; mundo, finalmente, libertado e destinado, segundo o desígnio de Deus, a ser transformado e alcançar a própria realização. »
Esta perspectiva traçada pelo Concílio, esclarece em profundidade a responsabilidade particular dos leigos na Igreja : «Por vocação própria, compete aos leigos procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus. ( ... ) São chamados por Deus para que, aí, exercendo o seu próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento ( ... ), Portanto, a eles compete especialmente, iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e Redentor.»
A doutrina social da Igreja
Por conseguinte, como « transfigurar o mundo segundo o Evangelho », para responder à fórmula muito bela do bem-aventurado João Paulo II? Se o Magistério evoca em primeiro lugar a vida familiar e a esfera da vida privada de cada um de nós, também insiste igualmente sobre o seu aspeto coletivo, social –em sentido lato. E é aqui que é necessário evocar o papel e a importância da doutrina social da Igreja. Há mais de um século, de facto, a Igreja mãe e educadora, Mater et Magistra, como dizia o bem-aventurado João XXIII, ilumina o nosso olhar e oriente a nossa ação de leigos no mundo. Este ensinamento foi marcado nos seus inícios pela encíclica Rerum Novarum de Leão XIII, em 1891. E desenvolveu-se consideravelmente em seguida. Hpje cobre quase todos os aspetos da vida em sociedade: o trabalho, a paz e o desenvolvimento, os direitos do homem, as desregulamentações do comércio internacional e da finança mundial, a proteção do ambiente, etc. A sua mais recente expressão é a grande encíclica do nosso Papa Bento XV.
I: Caritas in veritate.
Não se trata hoje de explorar convosco este imenso tesouro. Mas para enriquecer ainda a nossa reflexão sobre a missão dos leigos na Igreja, recordaria simplemente a definição sintética de todo este ensinamento: «A doutrina social da Igreja propõe princípios de reflexão; ela desprende-se dos critérios de julgamento; ela dá orientações para a ação. »33
Retomemos cada um destes três elementos :
- A Igreja propõe princípios de reflexão: as Escrituras e a Tradição da Igreja oferecem-nos princípios seguros e fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana, as exigências da justiça, da verdade e da caridade, a procura do bem comum, etc. Nós encontramos estes princípios expostos nos grandes documentos como Pacem in terris, Populorum progressio, Laborem exercens, Evangelium vitae, etc.
- Aplicados a situações concretas, esses princípios permitem esclarecer os critérios de julgamento. Pio XI por exemplo, no contexto sombrio de 1937, analisa os fundamentos do comunismo e do nacionalismo (Divini redemptoris e Mit brennender Sorge). Depois da queda do muro de Berlim e da derrocada do bloco soviético, o bem-aventurado João Paulo II propõe a sua análise da nova situação mundial ( Centesimus annus, 1991). O nosso Papa Bento XVI apresenta, em 2009, uma análise corajosa e lúcida dos excessos do capitalismo mundial e do individualismo liberal, e das suas consequências (Caritas in veritate).
- O Magistério dá por fim orientações para a ação. Em situações concretas, as autoridades podem convidar os cristãos a agir em conjunto num sentido determinado. Pensemos na extraordinária resistência da Igreja polaca ao tempo do comunismo, sob a direção do Cardeal Vichinsky. Pensemos na Iuta contra as leis a favor do aborto ou do casamento homosexual, na Espanha e noutros lugares. Pensemos no combate contra a corrupção, as injustiças e a droga, em muitos países do mundo.
Esta doutrina social da Igreja ilumina e orienta a missão dos leigos no mundo ; mas não a determina. De facto não existe um regime político cristão, uma economia cristã, uma pedagogia ou uma medicina cristã. Mas há uma maneira cristã de fazer a política, a economia, a pedagogia ou a medicina. Observaram os 3 verbos utilizados nesta definição ? «propor»,«esclarecer», « dar». Não são imperativos. Pelo contrário abrem para a diversidade das respostas possíveis, ao pluralismo que nem sempre foi bem aceite na prática dos cristãos. E contudo!
Há um século e meio por exemplo, numa França muito monárquica, aos católicos era proibido apoiarem uma República herdada da Revolução; na mesma época em que na Itália, aos católicos era proibido apoiarem a monarquia que acabava de anexar Roma. Ou ainda, durante a segunda guerra mundial na Europa, encontravam-se bispos e católicos nos dois campos. O mesmo se verifica atualmente, a Conferência episcopal dos Estados Unidos, tomou posição contra os armamentos nucleares, mas ela é, talvez a única.
Este pluralismo de escolhas possíveis esclarece a responsabilidade pessoal de cada leigo no mundo, um domínio no qual o Concílio reconhece a justa autonomia das realidades temporais: «Para além de ser uma exigência dos homens do nosso tempo, trata-se de algo inteiramente de acordo com a vontade do Criador. ».
Liberdade e responsabilidade dos leigos. Paulo VI recordava-o aos membros dos Institutos seculares : « A primeira atitude a tomar perante o mundo é o respeito da sua autonomia legítima, dos seus valores e das suas leis. » Mas esta autonomia não significa independência: as coisas criadas dependem de Deus, e os homens não podem dispor delas à sua vontade, sem referência ao Criador. Do mesmo modo, que não podem enveredar por uma via, que seja contrária às exigências da sua fé.
A partir daí, como é que os leigos vão efetuar a sua escolha e decidir as suas ações no mundo? O Concílio responde: « Compete à sua consciência prèviamente bem formada, imprimir a lei divina na vida da cidade terrestre. Dos sacerdotes, esperem os leigos a luz e força espiritual. Mas não pensem que os seus pastores estão sempre de tal modo preparados que tenham uma solução pronta para qualquer questão, mesmo grave, que surja, ou que tal é a sua missão. Antes, esclarecidos pela sabedoria cristã, e atendendo à doutrina do magistério, tomem por si mesmos as próprias responsabilidades. »
Para exercer no melhor dos modos a sua missão na Igreja, os leigos têm portanto duas ferramentas, duas bússolas:
- uma ferramenta objetiva para os esclarecer intelectualmente: é a doutrina social da Igreja; o bem-aventurado João Paulo II fez mesmo dela um dos três pilares de toda a formação séria dos leigos, com a formação doutrinal e a formação espiritual ;
- uma ferramenta subjetiva para os esclarecer espiritualmente: é a sua consciência. Existe uma exigência essencial para a missão dos leigos na Igreja, porque não é necessário ser crente para pôr em obra esta Doutrina social. Gaudium et spes descreve assim a consciência, inspirando-se ao bem-aventurado John Henry Newman : «A consciência é o centro mais secreto do homem, o santuário onde ele está sozinho com Deus e onde a sua voz se faz ouvir. »
Para obedecer à própria consciência, o leigo deve, portanto, aprender também a discernir a voz de Deus no silêncio interior. Ele não pode assumir a sua missão na Igreja sem desenvolver a sua própria interioridade no segredo da oração; ele não pode servir Deus no mundo se, na fé, não escuta primeiro a voz de Deus na proximidade de corações da oração. Porque os leigos - que esperamos sejam crentes – são, antes de tudo, instrumentos vivos e colaboradores do Espírito Santo, o único verdadeiro mestre e agente da missão.
Chegou a hora de concluir esta intervenção demasiado longa.
Eu sublinharia em primeiro lugar um deslize semântico que introduzi discretamente. De facto, eu parti do tema proposto: «o serviço da Igreja como leigos e enquanto leigos» ; depois esse tema foi tornando-se progressivamente «a missão dos leigos na Igreja»: a missão é mais rica de sentido que o serviço; e «da Igreja» tornou-se de maneira mais explícita: «na Igreja». Já era uma forma de responder à questão colocada.
Por outro lado, e para sublinhar a urgência do compromisso dos leigos na missão de toda a Igreja, relembraria uma breve recordação pessoal. Há vinte anos atrás, trabalhei um inteiro semestre na Universidade de Tübingen, na Alemanha. Durante a Quaresma, todas as Igrejas tinham afixado em grandes lettras esta bela frase : « Gott hat keine Hände, nur deine », Deus não tem outras mãos , senão as tuas; que convite!
À sua maneira já Santo Inácio de Loyola nos convidava a «rezar a Deus como se tudo dependesse dele, e a agir como se tudo dependesse de nós ». De igual modo o bem-aventurado João Paulo II dirigindo-se aos leigos: «Novas situações, tanto eclesiais como sociais, económicas, políticas e culturais, reclamam hoje, com uma força toda particular, a acção dos fiéis leigos. Se o desinteresse foi sempre inaceitável, o tempo presente torna-o ainda mais culpável. Não é lícito a ninguém ficar inativo. »
Nós, aqui presentes, que somos membros de Institutos seculares, deixemos de novo ressoar em nós estas fórmulas de Paulo VI, que conhecemos bem e que resumem muito bem o nosso ideal :
- «alpinistas espirituais » ;
- «no mundo, não do mundo, mas para o mundo »;
- «ala avançada da Igreja no mundo » ;
- «laboratório de experiências no qual a Igreja verifica as modalidades concretas das suas relações com o mundo ».
Enfim, e visto que estamos em Assis, na proximidade fratema de São Francisco, escutemos uma das suas orações à luz de tudo o que acabou de ser dito:
Senhor: Fazei de mim um instrumento de vossa Paz.
Onde houver Ódio, que eu leve o Amor,
Onde houver Ofensa, que eu leve o Perdão.
Onde houver Discórdia, que eu leve a União.
Onde houver Dúvida, que eu leve a Fé.
Onde houver Erro, que eu leve a Verdade.
Onde houver Desespero, que eu leve a Esperança.
Onde houver Tristeza, que eu leve a Alegria.
Onde houver Trevas, que eu leve a Luz!
Obrigado pela vossa paciência e atenção benevolente!
UM NOVO MODELO DE SANTIDADE COMO FIDELIDADE A DEUS NO MUNDO
Monsenhor Gérald Cyprien Lacroix
Arcebispo do Quebeque
Primaz do Canadá
Uma canção muito bela do grande poeta quebequense Félix Leclerc contém as seguintes palavras:«É bela a vida, é grande a morte, está plena de vida no seu interior». No que se refere ao tema que me pediram para expôr hoje no quadro desta Conferência mundial dos Institutos secula-res, tomo a liberdade de parafrasear o nosso ilustre cançonetista dizen-do à minha maneira : « É santa a vida, é santa a morte, está plena de Deus no seu interior» ! De facto, visto que Deus é santo, até mesmo três vezes santo, não terá a obra das suas mãos a própria marca do seu Cria-dor ?
Desde ontem que refletimos sobre este desafio com que nos de-paramos, o de escutar Deus nas sendas da história, na qual somos cha-mados a viver intensamente a nossa vocação cristã. Tentamos definir novos modelos de santidade no mundo, mantendo-nos fiéis a Deus.
Logo à partida, entrego-vos numa só palavra a chave de interpreta-ção das minhas palavras que concernem a santidade, a sua essência e a sua mais bela manifestação, Jesus Cristo ! Ele é o novo modelo de santi-dade. Ele é Aquele que encarnou a fidelidade a Deus no mundo. Nós não encontraremos nada de novo fora d´Ele, porque ele é Alfa e Ómega. « Je-sus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e para sempre » (Heb 13, 8)
A obra santa de Deus Criador
Chamo a vossa atenção para a palavra santo, a qual ecoa na nossa Igreja há séculos em cada uma das celebrações eucarísticas. O SANCTUS é o principal hino de adoração da nossa liturgia ; é o cântico do cerimo-nial celeste. A primeira parte deste hino vem do profeta Isaías que ouviu os Serafins exclamar três vezes : «E clamavam uns para os outros : Santo, Santo, Santo é o Senhor do Universo ! Toda a terra está cheia da sua gló-ria» (Is 6, 3). A segunda vem da aclamação da multidão que agita os ra-mos aquando da entrada de Jesus em Jerusalém, a cidade da sua paixão : «E tanto as pessoas que iam à frente de Jesus como as que iam atrás excla-mavam : Glória ao Filho de David ! Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor ! Glória a Deus nas alturas !» (Mt 21, 9).
Sem dúvida já notaram que especialmente no primeiro texto a refe-rência à santidade de Deus não se sussurra como poderia ser conve-niente na majestade de uma corte divina. Ela é gritada a plenos pulmões, como um trovão que se repercute até aos confins do universo e ao mais profundo dos nossos corações. Esta santidade é contagiosa e imperiosa. Ela ditou em primeiro lugar ao profeta Isaías uma tomada de consciên-cia da sua natureza pecável: «Ai de mim, estou perdido! Sou um homem de lábios impuros» (Is 6, 5). Mas imediatamente após esta confissão, um formidável processo de conversão se operou nele. Quando a voz de Deus três vezes santo se faz ouvir para o convidar, apesar de tudo, a servi-Lo no cumprimento de uma exigente missão profética, ele aceita o desafio e responde : «Aqui estou eu ! Envia-me a mim.» (Is 6, 8). Como é que nós, como Isaías, somos interpelados, chamados, na nossa vida cristã, e como membros de um Instituto secular, pela santidade de Deus ? Que ligação podemos estabelecer entre a santidade de Deus e a nossa missão de vi-ver santamente neste mundo, seja em que tempo e em que lugar for ?
O apelo de Deus à vida
No decurso da nossa vida, cada um e cada uma de nós somos convidados a responder a um grande número de chamadas, começando pela mais fundamental, a do Criador a entrar no mundo dos vivos : «Deus criou então o ser humano à sua imagem; criou-o como verdadeira imagem de Deus. E este ser humano criado por Deus é o homem e a mul-her. »(Gn 1, 26-27)(solo il 26???). Desde o momento da nossa concep-ção e do nosso nascimento, somos chamados por Deus a fazer parte da nobre corte daqueles seres que, há milhões de anos, povoam a terra e lhe conferem o seu caráter mais prestigioso, a humanidade.
A entrada num mundo criado por Deus para que o homem aí realize o seu destino traz a marca indelével do seu Criador : «E Deus achou que tudo aquilo que tinha feito era muito bom.» (Gn 1, 31). Como membros de um Instituto secular, para nós é importante reconhecer a santidade desse mundo criado por Deus e tornarmo-nos os modelos para a reali-zação do seu projeto para a humanidade. De que outro modelo mais apropriado podemos hoje evocar a recordação nesta doce cidade de As-sis, senão o do mais ilustre dos seus filhos, uma figura entre as mais simpáticas da hagiografia cristã, aquele a quem chamamos fraterna-mente Francisco, aquele jovem, seduzido por Jesus Cristo e pelo seu Evangelho? Nós voltaremos a este ponto mais tarde nesta Conferência. Eis um homem que percebeu, com uma sensibilidade surpreendente, o caráter sagrado da natureza criada por Deus, e que a cantou em tons poéticos que testemunham a sua fé profunda : « Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas especialmente o meu senhor irmão Sol…» e de declinar em seguida todos os elementos da criação. Não é deste modo que nós deveríamos reconhecer a beleza com a qual o Cria-dor dotou a sua obra, que ele fez santa, tudo o que é visível e invisível, e de modo a enriquecer a nossa vida da alegria de tomar parte nela para exclamarmos com o salmista : « O céu proclama a glória de Deus, o fir-mamento anuncia a obra da sua criação!» (Sl 19, 2). A influência de Fran-cisco atravessou os séculos e transpôs os continentes e os mares. Ele emprestou o seu nome a numerosas gerações de cristãos, como o do meu predecessor, o Bem-aventurado Francisco de Laval, primeiro bispo do Quebeque.
Longe de mim a ideia de sugerir a imagem de uma terra idílica, sem falhas e sem defeitos, uma espécie de paraíso terrestre como o descre-vem certos autores do século XVI depois de se terem aventurado, aliás muitas vezes por acaso, no Novo Mundo.
Estamos bem longe de imaginar o mundo criado por Deus como um paraíso, mesmo perdido, e os humanos que o habitam como anjos, que nos parecem por vezes, infelizmente, um pouco decaídos. A história re-cente da humanidade pôs dolorosamente em exergo traços particular-mente violentos do comportamento de alguns dos nossos contemporâ-neos. Os conflitos continuam a causar devastações em numerosos pon-tos do globo. Assistimos, estupefactos e impotentes, à degradação rápida do nosso planeta contaminado por gases efeito estufa e por muitas ou-tras matérias poluentes. Os boletins de informação não cessam de nos transmitir imagens de massacres de humanos, de cataclismas que de-vastam com uma só vaga, ou em violentos abalos sísmicos, milhares de pessoas, cuja única culpa era encontrar-se ali, naquele preciso momento. É esta a terra que o Criador, na sua infinita santidade, legou em herança aos homens para que se multiplicassem e a submetessem ? Por diversas razões, eu afirmo que temos o dever de ultrapassar os obstáculos que a vida nos impõe e de captar por todo o lado a bela obra de Deus. E eis a principal razão.
A obra-prima da criação :
O Verbo de Deus dado ao mundo
Deus perfez a obra da sua criação dando ao mundo o mais santo dos seus tesouros, o seu próprio seu Filho : «A Palavra fez-se homem e veio habitar no meio de nós, e nós contemplámos a sua glória, como glória do Filho único do Pai, cheio de graça e de verdade.» (Jo 1, 14) Desde os inícios da sua vida pública, desde o seu batismo no Jordão, Jesus de Na-zaré vê-se designado pelo Pai como « Tu és o meu Filho querido; com a maior satisfação te escolhi.»(Mc 1,11). Na mesma narração evangélica, desta feita por ocasião da Transfiguração de Jesus, a voz de Deus orde-nará aos discípulos que o escolham como modelo: «Este é o meu Filho, o escolhido; escutem o que Ele diz.»(Lc 9, 36). (Corrisponde al 35 e non al 36???) Eis portanto estabelecida a supremacia de Cristo e confirmado o papel que Ele vai desempenhar na salvação de toda a humanidade, e na realização do projeto de santificação de todas as pessoas que, para o fu-turo do mundo, queiram seguir os seus passos.
Jesus Cristo, o perfeito modelo de santidade para todos os tempos
Que modelo mais pertinente poderíamos evocar para ter a certeza de viver segundo o plano que Deus traçou para a humanidade e de transformar o mundo com Ele, senão o de pousar o nosso olhar sobre o próprio Jesus! Cristo Jesus balizou bem o caminho para que nós sejamos, por nossa vez, o sal da terra e a luz do mundo, e que nos tornemos os no-vos modelos de santidade hoje, neste nosso mundo.
O Senhor Jesus amou sinceramente a terra e todos os seus habitan-tes e reconheceu o seu caráter sagrado. Muitas das parábolas, que ele utiliza para anunciar a sua mensagem, fazem referência a uma natureza que ele considera bela, que ele habita de dia e muitas vezes de noite. As-sim ele evoca a figueira, os lírios dos campos, o trigo colhido mesmo no dia de sábado, os pássaros, a água dos lagos e dos rios, a terra, o vento e o céu, o vinho das bodas de Caná e o pão da Ceia.Todos estes elementos testemunham uma estreita familiaridade com o ambiente em que ele vive.
Mas a sua maior solicitude manifesta-se para com o seu povo, as mulheres, crianças e os homens do seu tempo, a quem ele demonstra um profundo interesse, um afeto tocante, efusões sinceras de simpatia e de piedade. Ele constata quanto o mal e a doença devastam os corpos e os espíritos e dedica-se a aliviá-los e a curá-los. Longe de fugir perante as problemáticas sociopolíticas ou religiosas da sua época, ele propõe respostas que testemunham a sua afeição incondicional ao Amor do seu Pai, que se revela o fundamento de todas as suas ações, de todas as suas decisões e de toda a sua vida. Essa santidade deixará uma tal marca so-bre os seus contemporâneos, que inflamará o coração de numerosos discípulos. Como Cristo lhes ensinou, eles espalhar-se-ão através do mundo conhecido e os efeitos da sua ação chegarão até nós: «Então Jesus aproximou-se deles e declarou: « Foi-me dado todo o poder no Céu e na Terra. Portanto, vão e façam com que todos os povos se tornem meus dis-cípulos. Baptizem-nos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo e, en-sinando-os a obedecer a tudo quanto eu tenho mandado. E saibam que estarei sempre convosco até ao fim dos tempos.» (Mt 28, 19-20) (Mt 28, 18-20???)
A mensagem evangélica que inspira a vida das cristãs e dos cristãos emana em linha direta da pessoa do Cristo « ... o Caminho, a Verdade e a Vida» (Jo 14, 6). A existência cristã é portadora de um sentido que nos guia no conjunto do nosso percurso de vida, nas nossa relações huma-nas, nas nossas atividades profissionais e sociais. Nós tentamos então imitar os valores mais fundamentais que o próprio Cristo considerou conformes à vontade do seu Pai : « Se observarem os meus mandamentos, como eu observo os do meu Pai, permanecereis no meu amor como eu no do meu Pai.» (Jo 15, 10). De facto, são valores como estes que suscitaram a admiração das pessoas que tiveram o privilégio de o conhecer ou de o encontrar, e que marcaram aqueles que acolheram o seu ensinamento. Vejamos mais de perto alguns desses valores fundadores privilegiados por Jesus. Tomemos o tempo de constatar como eles são susceptíveis de provocar o compromisso das cristãs e dos cristãos, especialmente como membros de Institutos seculares que nós somos, na nossa marcha rumo à santidade no coração do mundo.
O reconhecimento da dignidade da pessoa humana é um dos valo-res mais fundamentais preferidos por Jesus Cristo na sua vida e nos seus ensinamentos. Numerosos relatos evangélicos descrevem o Senhor transpondo certos tabús sociais da sua época. Ele ousou manifestar compaixão para com pessoas que eram consideradas como uma quanti-dade negligenciável na sociedade, por exemplo as crianças ou certas ca-tegorias de pessoas doentes como os leprosos, que eram excluídos e desprezados. Ele exprimiu uma profunda piedade para com os doentes, que acorriam a ele, aos milhares, para serem curados de sofrimentos frequentemente considerados vergonhosos. Uma das atitudes mais au-daciosas e mais inovadoras para um homem daquele tempo, é a sua po-sição para com as mulheres, fossem elas prostitutas, viúvas, estrangei-ras ou simplesmentes amigas muito queridas. Eis alguns dos valores es-timados por Jesus, e que são susceptíveis de fazer nascer, por emulação, novos modelos de santidade perfeitamente compatíveis com o plano de Deus no nosso mundo. Como se pode chegar lá?
Batizados em Jesus Cristo, vivemos da sua vida e resplandecemos do ardor da nossa fé
Somos chamados a tornar-nos, por nosso lado, testemunhas da san-tidade de Deus nesta comunidade crente que é a Igreja de Jesus Cristo e no mundo que ela tem por missão guiar e santificar. O momento funda-dor da nossa vocação, é o batismo que nos recria e nos confere a nossa identidade insígne de filhos de Deus para uma vida nova e eterna. Quando escolhemos perfazer a nossa vida batismal entrando para um Instituto secular, era para melhor responder, dia após dia, ao apelo de Cristo a tornarmo-nos santos e santas «Pelo contrário, sejam santos em tudo o que fazem, assim como Deus, que vos chamou, é santo. Pois a Escri-tura diz : Sejam santos, porque eu sou santo.» (1 Pe 1, 15-16). Eis o desa-fio que devemos superar, ou a bela missão a realizar, viver santamente no nosso mundo sempre à procura do sentido, sequiosos da verdade, que parece tão agreste a toda a referência ao sacro, especialmente à re-ligião, sem ceder ao efeito de osmose que arriscaria arrastar-nos e de-sencorajar-nos, mas permanecendo centrados em Cristo.
Porque nem Cristo Jesus, nem as Escrituras, nos fornecem uma res-posta fácil e imediata aos maiores problemas do nosso tempo. A nossa fé não possui receitas mágicas para resolver as grandes questões existen-ciais sobre a origem do mundo e da vida, ou sobre o que se deve enten-der por qualidade de vida ou a dignidade da morte. Ela é constante-mente confrontada com os problemas éticos que resultam de pesquisas biomédicas, tecnológicas e das transformações sociopolíticas e econó-micas que remodelam o mundo a um ritmo perturbador. Ela não apaga os nossos receios perante o emprego de armas de destruição de massas, nem perante a incerteza à qual pode conduzir um desenvolvimento er-rático da ciência e da tecnologia.
Vivemos no coração de um mundo em plena ebulição. Sabemos re-conhecer os avanços positivos da ciência, da tecnologia e os progressos da medicina, o que coloca em evidência as capacidades humanas recebi-das do Criador. Contudo, nós somos chamados, pelo nosso batismo e a nossa condição de discípulos de Cristo, a ter uma visão crítica perante as escolhas da sociedade que em nada contribuem para o avanço da huma-nidade porque não respeitam a dignidade do ser humano.
Num mundo secularizado e rebarbativo
Um olhar rápido sobre as grandes tendências das nossas socieda-des ocidentais envia-nos de remando uma imagem que choca frequen-temente com a nossa compreensão das mais fundamentais marcas de referência do nosso código de conduta cristã: hedonismo, individualis-mo, mercantilismo, injustiça, indiferença, até mesmo desprezo em rela-ção ao sagrado e à religião, fazendo aparecer comportamentos que vão ao encontro do ideal proposto pelo Evangelho.
Atualmente assiste-se a uma desoladora falta de cultura religiosa mesmo nas pessoas de uma geração em que a fé foi mais sistematica-mente ensinada mas onde, por diversos motivos, esses homens e essas mulheres não tiveram um encontro pessoal com Cristo. É nesse humús que nós somos convidados a sermos « uma luz que brilha para aqueles que estão em casa » (Mt 5, 16). As palavras que o Bem-aventurado Papa João Paulo II dirigiu aos participantes do Congresso mundial dos Institu-tos seculares, em 1980, continuam a ser pertinentes para nós aqui em Assis, neste dia 24 de julho de 2012. O SantoPadre citava então as pala-vras do seu predecessor, o papa Paulo VI, aos Responsáveis gerais dos Institutos seculares (25 de agosto de 1976) : «Se se mantiverem fiéis à sua própria vocação, os Institutos seculares tornar-se-ão como que 'o la-boratório de experiência' em que a Igreja verifica as modalidades concre-tas das suas relações com o mundo. É por isso que eles devem ouvir, como se fosse dirigido sobretudo a eles, o apelo da Exortação apostóli-ca Evangelii Nuntiandi: « A sua primeira e imediata tarefa... é pôr em prá-tica as possibilidades cristãs e evangélicas escondidas, mas já presentes e operacionais nas coisas do mundo. O campo próprio da sua actividade evangelizadora é o mesmo mundo vasto e complicado da política, da rea-lidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional e dos mass media(nº 70).» Eis o campo fértil já completamente traçado para empreender uma nova evangelização! Vejamos rapidamente como a nossa busca de modelos de santidade po-derá frutificar nesta nova paisagem, onde somos os trabalhadores en-viados para a vinha do Senhor.
Escutemos ainda o que o Bem-aventurado papa João Paulo II escre-via na sua Exortação apostólica Christifideles Laici (30 de dezembro de 1988, Nº 3), sobre a atitude que é conveniente ter em relação ao mundo no qual vivemos «Temos pois de encarar de frente este nosso mundo, com os seus valores e problemas, as suas ânsias e esperanças, as suas conquis-tas e fracassos: um mundo, cujas situações económicas, sociais, políticas e culturais, apresentam problemas e dificuldades mais graves do que o que foi descrito pelo Concílio na Constituição pastoral Gaudium et Spes. É esta, todavia, a vinha, é este o campo no qual os fiéis leigos são chamados a vi-ver a sua missão. Jesus quer que eles, como todos os Seus discípulos, sejam sal da terra e luz do mundo.»
É assim tão difícil responder ao convite de Cristo, nossa via e nosso modelo, que nos convida a segui-lo «…de modo a que estejam onde eu estiver.» (Jo 13, 3) ( Jo 14, 3???). Nós tocamos assim o coração do dilema que nos observa como discípulos ávidos de realizar o nosso ideal de san-tidade permanecendo fiéis ao plano de Deus sobre o mundo. Como agir em conformidade com as nossas convicções no mundo em que vive-mos ? Devemos desprezá-lo ou retirarmo-nos, ignorá-lo ou viver fecha-dos numa redoma, ou pelo contrário amá-lo e crer que o Espírito o habi-ta e o santifica? Eu proponho uma visão positiva da nossa pertença ao mundo. Deus criou-o para nós. «Deus é nosso Pai, enquanto nosso cria-dor. Porque Ele criou-nos, nós pertencemos-Lhe. O Ser, enquanto tal, pro-vém d`Ele, assim ele é bom e participação de Deus.» (Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré, 2007, p 161). Somos agora convidados a participar com Ele à sua recriação com a força do Espírito de Jesus ressuscitado !
A voz do Senhor transmite-se através dos acontecimentos da histó-ria da Igreja e da humanidade, como nos recordam os padres do Concílio Vaticano II: «O Povo de Deus, movido pela fé com que acredita ser condu-zido pelo Espírito do Senhor, o qual enche o universo, esforça-se por dis-cernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações, em que participa juntamente com os homens de hoje, quais são os verdadeiros sinais da pre-sença ou da vontade de Deus. Porque a fé ilumina todas as coisas com uma luz nova, e faz conhecer o desígnio divino acerca da vocação integral do homem e, dessa forma, orienta o espírito para soluções plenamente hu-manas.» (Constituição pastoral Gaudium e Spes, 11)
As narrações da Criação lembram-nos que Deus se maravilhou pe-rante a sua obra e a considerou « boa». Devemos ser capazes de fazer a mesma coisa. Todavia, o Senhor também foi capaz de ver o sofrimento e o mal que entraram no mundo por causa do pecado. Este mundo em que vivemos, frequentemente inquietante e ameaçador, força-nos a remeter-nos às luzes do Espírito de Deus e aos ensinamentos do Magistério da sua Igreja. Temos o dever de velar, de trabalhar na medida dos nossos meios para modificar certas problemáticas que são da nossa responsabi-lidade e de esperar, contra toda a esperança, no júbilo e na solidarie-dade humana. Eis umas pistas que os batizados, e particularmente as mulheres e os homens membros de Institutos seculares, podem explo-rar para esboçar modelos de santidade nos seus compromissos respeti-vos. Decerto, não é uma tarefa fácil mas que desafio interessante!
Um mundo à espera de amor, de fé e de esperança
Como definir um modelo de santidade num mundo que faz do pra-zer o princípio e o objetivo da vida, e que procura o máximo da satisfa-ção com o mínimo do esforço ? Vocês reconheceram nestas palavras a definição de hedonismo e de individualismo que se aproximam, duas correntes caraterísticas da nossa sociedade atual. É verdade que esta tendência para a facilidade e o dobrar-se sobre si mesmo, se observam no comportamento de grupos sociais e de indivíduos cada vez mas ávi-dos de obter cada vez mais benefícios, em detrimento das responsabili-dades que os deveriam acompanhar. Mas também é verdade que formi-dáveis forças de generosidade e de partilha estão a agir no mundo. Pen-semos nas lutas contra a pobreza e o analfabetismo, no auxílio dado às vítimas de guerras e de outras catástrofes pelos médicos sem fronteiras e os voluntários de grande coração, nos milhares de homens e de mul-heres que, em nome da sua fé cristã, militam em prol do respeito pela vida ou para o estabelecimento da justiça e da paz.
Considerando esta múltiplas manifestações de gratuitidade, de generosidade e de altruis-mo, eu não posso deixar de admirar a realização daquilo que podería-mos denominar a Carta da santidade cristã, o magistral discurso das beatitudes «…Felizes os que têm fome e sede de ver cumprida a vontade de Deus, porque Deus os satisfará…Felizes os que promovem a paz, porque Deus lhes chamará seus filhos.» (Mt 5, 6-9) É neste mundo que nós somos chamados a levar a Boa Nova para uma nova evangelização.
Chamados a testemunhar o amor de Deus por uma nova evangeli-zação
Embora o termo « nova evangelização» seja agora muito divulgado e suficientemente assimilado, continua a ser uma expressão que apare-ceu recentemente no universo da reflexão eclesial e pastoral, de modo que a sua significação nem sempre é clara e estabelecida. Foi o Bem- aventurado papa João Paulo II que pronunciou pela primeira vez o ter-mo nova evangelização. E fez dele a pedra angular do seu Magistério : «Hoje tem de se enfrentar com coragem uma situação que se vai tornando cada vez mais variada e difícil com a progressiva mistura de povos e culturas que caracteriza o novo contexto da globalização. Ao longo destes anos, muitas vezes repeti o apelo à nova evangelização; e faço-o agora uma vez mais para inculcar sobretudo que é preciso reacender em nós o zelo das origens, deixando-nos invadir pelo ardor da pregação apostólica que se seguiu ao Pentecostes. Devemos reviver em nós o sentimento ar-dente de Paulo que o levava a exclamar: « Ai de mim se não evangelizar! » (1 Cor 9, 16)(Novo Millenio Ineunte, No40).
Sua Santidade o nosso papa Bento XVI continua agora a orientação do seu predecessor como atestam a criação do Pontifício Conselho para a nova evangelização, a 12 de outubro de 2010, e a realização do próximo Sínodo dos bispos em Roma, de 7 a 28 de outubro, o qual trata-rá de «A nova evangelização para a transmissão da fé cristã». O Santo-Padre especificará aliás as suas intenções relativamente a esse Conselho afirmando : «Portanto, assumindo a preocupação dos meus venerados Predecessores, considero oportuno oferecer respostas adequadas a fim de que a Igreja inteira, deixando-se regenerar pela força do Espírito Santo, se apresente ao mundo contemporâneo com um impulso missionário capaz de promover uma nova evangelização.» (Motu Proprio « Ubicumque e Semper », 21 de setembro de 2010).
A Igreja e o mundo têm necessidade de uma nova evangelização, não de um novo Evangelho! Trata-se portanto de anunciar a Boa Nova de uma maneira renovada, preocupando-se em concentrar-se sobre o coração da fé que pode revirar as nossas vidas, tocar e atrair os corações dos crentes e dos não-crentes. Para nós, membros de diversos Institutos seculares que somos chamados a participar neste vasto estaleiro, é im-portante recordar que as melhores condições para a sua realização, são a experiência profunda e pessoal do amor de Cristo e da sua salvação. « Quem verdadeiramente encontrou Cristo, não pode guardá-Lo para si; tem de o anunciar ou arrisca-se a dever colocar-se corajosamente esta questão : Se não tenho o prazer de o anunciar, tê-lo-ei encontrado verda-deiramente?» (Novo Millenio Ineunte, No40).
Enquanto verdadeiros crentes, com o apoio do Espírito de Deus, nós somos chamados à santidade e convidados a testemunhar durante toda a nossa vida a beleza dos valores evangélicos. Estes devem trans-parecer em tudo o que somos e fazemos. A evangelização testemunha a experiência pessoal e comunitária do Amor de Deus, das maravilhas de Deus na sua vida e não sobre o que ele aprendeu sobre Deus : « A von-tade de Deus a vosso respeito é que vivam em santidade...» » escreve o apóstolo Paulo aos Tessalonicenses (1 Ts 4, 3)
Algumas belas testemunhas da presença diligente de Deus
Nós admiramos grandes testemunhas cuja vida e obra tocaram e transformaram a humanidade. Leigos como Jean Vanier, Madeleine Del-brêl, Chiara Lubich, Madre Teresa de Calcutá, e muitos outros que pode-ríamos evocar. Eis os verdadeiros modelos cujo trabalho e a influência testemunham a potência do Espírito no nosso tempo. São comporta-mentos como estes que nos devem inspirar no nosso caminho de vida e na busca da santidade. O papa Paulo VI dizia bem que «O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas» (Evangelii Nuntiandi, nº 41).
Precisamente como vós, eu conheço pessoalmente pessoas que, nas próprias vidas, exprimem esta sede de perfeição e de imitação de Cristo, e que agem como faróis no universo nebuloso da vida de alguns dos seus contemporâneos. Eu pertenço ao Instituto secular Pio X, fundado em 1939 pelo Padre Henri Roy. Ele costumava dizer : « O único defeito de uma vida é não se tornar um santo.»As pessoas que se relacionaram com ele, classificaram-no como «obcecado pela santidade » (Revista Je Crois, 1985). Concordo que esta expressão pode parecer pejorativa, mas ga-ranto-vos que não o é. Como o Irmão Francisco, como todos os santos e santas que marcaram a vida da Igreja e marcaram a própria época, o Pa-dre Roy terá sido uma verdadeira testemunha do Amor e da solicitude de Deus no mundo. Ele foi um ardente artesão da caridade de Cristo para com todos os seres humanos, especialmente os pobres, os jovens e os mais desprotegidos de entre eles. Como já dizia o profeta Jeremias, esses homens e essas mulheres são« loucos de de Deus » : « Tu sedu-ziste-me, Senhor, e eu deixei-me seduzir » (Jr 20, 7).
Um modelo inspirador para o nosso tempo
Em certos momento da história, o destino parece hesitar entre cho-que e infortúnio, como se esperasse a vinda de alguém, mas ninguém vem. Nos finais do século XII, nesta cidade de Assis, um jovem consegue quase fazer triunfar o ideal. A sua vida desenrola-se em dois tempos como devesse ilustrar o que a vida tem de triste e de alegre, de pequeno e de grande, de mundano e de espiritual, de ocioso ou de sublime, num confronto existencial do qual São Paulo resume à sua maneira os parâ-metros, uma vida em que «esses instintos são contrários ao Espírito, e o Espírito é contra tais instintos.» (Gl 5, 16).
Eu cito o exemplo de São Francisco, não só porque a sua santidade foi reconhecida oficialmente pela Igreja, mas sobretudo porque vejo no seu percurso um modelo susceptível de inspirar as nossas próprias bus-cas de uma vida santa e florescente. Francisco nasce quando todos os excessos da vida são moeda corrente. A Antiguidade pagã ainda não foi esquecida e os seus costumes dissolutos não foram apagados pela men-sagem cristã. O país, como aliás a generalidade daqueles da Europa, está desgastado por guerras intestinas e lutas de poder. A clivagem entre ri-cos e pobres criou desigualdades escandalosas que geram a ignorância, a doença, e a fome. A própria Igreja vacila sobre as suas bases ; afasta-se da fidelidade ao seu Mestre e assim a sua missão torna-se pervertida. Um dia, Francisco ouvirá a voz de Cristo dizer-lhe :« Francisco, vai e re-para a minha Igreja que está em ruínas.»
Francisco cresce numa família burguesa e a sua juventude é plena de todos os prazeres e toda a despreocupação que lhe dá a riqueza, a notoriedade e um caráter bondoso que lhe fazem granjear facilmente a admiração e a simpatia de todos. Esta primeira parte da sua vida chega-rá ao seu fim com uma experiência espiritual inusitada, que começou na pequena Igreja de San Damiano. Como Blaise Pascal que, em 1654, conhecerá uma experiência semelhante que denominará « noite de fo-go », Francisco toma súbita e dolorosamente consciência da sua condi-ção pecadora. A imagem que ele tem de si próprio torna-se insuportável em comparação com aquilo que ele apercebe na pessoa de Cristo. Apanhado pelos remorsos, mas sobretudo ardendo de um amor in-condicional para com Aquele a quem ele doravante chama o Amor, ele compromete-se a tornar-se outro Cristo. Experimentará por sua vez esta experiência vivida antes dele por São Paulo : «Estou crucificado com Cristo. Por isso, já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim.»(Gl 1, 19-20) ( Gl2 ???)
Francisco é doravante um homem novo. Ele conhece bem a socie-dade e o mundo no qual vive. Prega em termos simples e compreensí-veis a conversão, o renovamento, o retorno a uma fé não baseada no conhecimento dos dogmas, na concretização de preceitos e na recitação maquinal de orações, mas numa verdadeira comunhão pessoal de amor com Cristo. A sua exortação não é moralizante ; não tem nada de dogmá-tico, nem de autoritário. Basta-lhe viver como Jesus, na alegria, na par-tilha, na compaixão e na santa pobreza para que o seu testemunho se torne a sua linguagem mais eloquente. Aquele que não fez estudos teo-lógicos, mas que anseia por partilhar a alegria que lhe dá o amor louco que ele tem a Deus, põe-se a caminho e divulga a Boa Nova com palavras que soam verdadeiras e que tocam os corações. Por uma vida de obe-diência e pobreza elevadas ao patamar de virtude, com a condição de que ela se identifique com a de Cristo, Francisco torna-se o artesão de uma nova evangelização no seu mundo. A sua influência infletirá o curso da história da Igreja e a de todo o mundo. A sua mensagem é um apelo premente aos homens e às mulheres de todos os tempos para se conver-terem, num convite a voltarem-se decididamente para Cristo nosso per-feito modelo para que Ele nos inspire com as suas atitudes, na nossa vi-da de todos os dias.
Cabe-nos a nós aceitar o desafio e servir modelos.
Na oração e no acolhimento da Palavra de Deus
Caros irmãos e irmãs dos Institutos seculares que trabalhais no co-ração do mundo por vossa profissão e por vosso compromisso no seio da Igreja, em diversos setores da vida humana e pastoral, juntos nós cremos sinceramente que o Espírito Santo nos guia na nossa busca de uma vida florescente, o que chamamos a nossa aspiração à santidade. E nós remeter-nos-emos à sua ação benfeitora e reconfortante para que ele seja indefetivelmente o nosso guia para a santidade, tal como nos diz o profeta Ezequiel «Vou pôr o meu espírito em vós e farei com que obede-çam fielmente às minhas leis e aos meus mandamentos que vos dei.»(Ez 36, 26-27). Profundamente arreigados neste mundo do qual nós nos empenhamos em descobrir as belezas e as grandezas, sabemos que ele é santo porque vem de Deus e que ele é habitado por Ele. Constatamos que o dom mais sublime do Criador para com os humanos é o seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo. Por Ele e em Ele, reconhecemos a Via e a Ver-dade. Nós estamos certos de poder contar com a força do seu Espírito para enfrentar pacificamente e positivamente todos os obstáculos que surgirão nos caminhos da vida.
« Sigam portanto o exemplo de Deus, uma vez que são seus filhos queridos. Vivam no amor de Deus à semelhança de Cristo que nos amou, oferecendo-se a si próprios por nós como um sacrifício bem aceite por Deus.» (Ef 5, 1).( Ef 5, 1 e 2???)
Este desafio não foi fácil de enfrentar. Foi difícil para Jesus ultra-passar as ciladas que lhe foram tendidas, as traições dos seus amigos, a incompreensão em relação à sua mensagem, os sofrimentos da sua paixão. Mas ele venceu a adversidade por meio da oração. Em todo o tempo, dia e noite, e especialmente quando o peso da sua missão se de-monstrava demasiado pesado para transportar, ele virava-se para o seu Pai e rezava. A oração estava no coração da vida de Jesus. Ela era um diálogo constante com Aquele que o tinha enviado. Ela era a consolação na noite da dúvida, o alimento nos desertos e o seu reconforto na prova-ção. A oração era o exutório nos momento de intensas alegrias e de grandes emoções, a fonte da qual ele bebia para realizar os milagres da cura das almas e dos corpos. Jesus era oração, cumprindo em todas as coisas a vontade do Pai, fazendo de nós os seus filhos. «Para provar que já são filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho aos nossos corações, e esse Espírito chama : Abba! Que quer dizer meu Pai!» (Gl 4, 4-6).
Quando os apóstolos pediram ao Senhor que lhes ensinasse a rezar (cf. Lc 11, 20), Ele ensinou-lhes a dizer « Pai Nosso » com palavras que jorrarão do seu coração , a oração que ele mesmo dirigia a Deus e à qual ele associou doravante todos os membros da sua família. Queridos ami-gos, eis a ferramenta mediante a qual podemos tornar-nos modelos de santidade. A oração é o grito e o sopro do Espírito em nós, que nos pro-pulsiona em direção aos nossos irmãos e irmãs onde quer que eles se encontrem. Outro elemento essencial na conquista da santidade é o lu-gar que ocupa a Palavra de Deus na nossa vida quotidiana. Os profetas tinham dois recursos para viver a própria missão : a oração e a Palavra de Deus. E não pode ser diferente para nós. Acolher, meditar, viver da Palavra de Deus revela-se um caminho seguro para fazer de nós santos, santas, para que a nossa vida seja ajustada ao plano de grandes frutos. Porque a Palavra, é Alguém, é o Verbo feito carne.
Na vinha do Senhor, aqui e agora
Nós trabalhamos para que a beleza brote em toda a parte, que seja testemunha da bondade, da grandeza, do génio e do Amor do Criador. Onde estivermos, nas nossas instituções de ensino, nas nossa famílias, nas nossa aldeias e nas nossas cidades onde vigiamos o crescimento de uma juventude feliz e de cidadãos empenhados em causas nobres e sus-tentáveis ; nas fábricas e laboratórios onde tentamos melhorar as condi-ções de vida dos nossos concidadãos ; nos hospitais, nas clínicas, nas re-sidências de pessoas de idade onde aliviamos a doença, o sofrimento do abandono e da solidão; nas associações onde criamos as condições favo-ráveis ao estabelecimento da paz, da justiça e da felicidade ; nas nossas comunidades cristãs onde nos dedicamos a repetir a mensagem de amor e de reconciliação inspirada pelo nosso louco amor para com Cris-to, eis o terreno no qual semeamos quotidianamente os germes duma santidade de onde emergem e emergirão novos modelos. Nós fazêmo-lo com os olhos e o coração fixado sobre Cristo do qual somos testemunhas ativas em tudo o que realizamos.
Cito com prazer as palavras do Cardeal Etchegaray aos padres da sua diocese de Marselha, na celebração da Quinta-feira Santa de 1978. Elas resumem com pertinência esta preocupação que é a nossa, de nos tornarmos modelos de santidade no nosso tempo : « Se tu abrandas o passo, os crentes param ; se tu enfraqueces, eles vacilam ; se tu te sen-tas, eles deitam-se : se tu duvidas, eles perdem a coragem ; se tu criticas, eles destroem ; se tu caminhas à sua frente, eles vão ultrapassar-te, se tu lhes dás a mão, eles darão até a sua pele ; se tu rezas, então eles serão santos.»(Texto atribuído a Michel Menu, dirigido aos escuteiros de França).
Mas a verdadeira palavra fim pertence a Jesus, como um chama-mento urgente, um desafio entusiasmante, um convite a participar ale-gre e corajosamente na sua missão : «Ao ver a multidão, Jesus sentiu imensa compaixão, porque andavam desorientados e perdidos como ovel-has que não têm pastor. Disse então aos discípulos : «A colheita é abun-dante, mas os trabalhadores são poucos. Peçam ao dono da seara que mande mais trabalhadores para a sua colheita » (Mt 9, 36-38). Resta-nos responder como Isaías : «Aqui estou eu ! Envia-me a mim.» (Is 6, 8).
Em tudo e por tudo no seguimento de Jesus
Como Cristo, nós iremos percorrer a passos largos os caminhos da história. Os que são sinuosos e sulcados por trilhos das rodas, os que parecem conduzir a impasses, os que parecem menos obstruídos e me-nos ameaçadores, os que se escancaram sobre horizontes prometedo-res. Nós vamos ao encontro dos nossos irmãos e irmãs na humanidade que frequenta esses caminhos, onde quer que se encontre. Estendemos-lhes uma mão caridosa, oferecemos-lhes de beber e de comer para os seus corpos e para os seus espíritos. Compartilhamos com eles um úni-co vestuário, os nossos bens, os nossos talentos, o nosso tempo. Conso-laremos os aflitos e secaremos as suas lágrimas ; visitaremos os prisio-neiros e dir-lhe-emos palavras que aquecerão os seus corações. Pore-mos mãos à obra para que todos os nossos esforços contribuam para a edificação da paz e da reconciliação. Denunciaremos as injustiças e as desigualdades, e assumiremos a defesa dos pobres e dos deserdados. Trabalharemos para o advento de um mundo melhor, mais lindo, mais próspero, mais justo e afirmaremos que é assim que Deus nosso Pai o quis. Nesses caminhos, anunciaremos em toda a parte que Deus é Amor, que ele é Justo e Bom, que cada pessoa é única, que ela conta para Ele e que Ele a ama.Tentaremos convencer cada uma das pessoas que, não obstante todas as aparências e tudo o que ela imagina, ela deve só deixar-se amar visto que Ele não espera outra coisa que amá-la, ser amado e entrar numa Aliança eterna.
No seguimento de Jesus que caminhou nas nossas estradas, se-meando aí os germes de uma vida humana feliz e afetuosa, mas ainda mais uma vida que desabrochará na casa do nosso Pai, nós recomendar-nos-emos ao seu Espírito para que ele nos guie, nos fortaleça nos esfor-ços e nos acompanhe. Então, como ele nos prometeu, ouviremos dizer «Venham abençoados de meu Pai ! Venham receber por herança o reino que está preparado desde a criação do mundo. Pois eu tive fome e deram-me de comer, tive sede e deram-me de beber, era peregrino e hospedaram-me, andava nu e deram-me que vestir, estive doente e visitaram-me, estive na cadeia e foram-me visitar. Saibam que todas as vezes que fizeram isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizeram.» (Mt 25, 34-40). Nesse momento, perceberemos que percorremos os camin-hos da santidade num modo amoroso de fidelidade a Deus no mundo onde ele nos criou.
Juntos, continuaremos com audácia, coragem e no júbilo da missão confiada. O Senhor chama-nos para tal, não tardemos, Ele está sempre connosco.
NOVAS LINGUAGENS E UMA NOVA LÍNGUA PARA A IGREJA
Ivan Netto
O que são as novas mídias?
“Novas Mídias” é um termo amplo que se refere às diversas formas de comunicação eletrônica que a tecnologia informática tornou possível. O termo é usado em oposição à "velha" mídia tais como jornais e revistas impressos, cujos textos e imagens gráficas são apresentados de forma estática.
Dentre as novas mídias podemos citar: websites, chat rooms, e-mail, community online, publicidade na web, DVD e CD-ROM, ambientes em realidades virtuais, telefonia via internet (integração entre dados digitais e telefone), podcasts, feed RSS, social network, SMS (torpedos), blogs, mundos virtuais, internet e PC em mobilidade, etc.
Segundo alguns observadores, a Igreja Católica, que já foi líder em comunicação, perdeu terreno no mundo das novas mídias. Tais observadores afirmam que o uso da nova mídia poderia ser muito útil e vantajoso nas atividades catequéticas, evangelizadoras e, de modo geral, nos esforços de comunicação da Igreja Católica no sentido de oferecer aos seus membros, tanto em âmbito nacional, como internacional, ou seja, no mundo todo, recursos de fácil acesso que poderiam contribuir na formação da comunidade.
Que tipo de contribuição as novas mídias podem oferecer?
As novas mídias colocam as pessoas em contato através de informações e serviços. Por exemplo, os pacientes portadores do vírus da AIDS podem permanecer em contato com suas próprias famílias, com amigos, com outros pacientes ou com aqueles que lhes prestam assistência. Elas promovem a colaboração entre as pessoas. Ainda exemplificando, facilitam o trabalho conjunto entre organizações que operam no campo da AIDS. Contribuem para criar novos conteúdos, serviços, comunidades e canais de comunicação que favoreçam a troca de informações. Através delas, com certeza, as organizações podem criar seus próprios websites e blogs.
Quais são as reações da Igreja em relação às novas mídias?
O Santo Padre Bento XVI salientou que as novas mídias não deveriam suscitar simplesmente entusiasmo, de um lado, ou ceticismo, de outro. Ele afirmou que a Igreja deveria aprender a utilizar as novas mídias de modo eficaz.
O Papa disse que as novas mídias, como qualquer outro meio de comunicação, oferecem modos específicos para a expressão de pensamentos e organização de ideias. Todas as linguagens são capazes de plasmar os pensamentos segundo a maneira como são expressos e as mídias sociais favorecem o aparecimento de capacidades mais intuitivas e emotivas do que analíticas. Além disso, tendencialmente, as mesmas suscitam uma inusitada organização lógica das ideias e das relações com a realidade.
Esta nova linguagem apresenta desvantagens, acrescentou o Papa, especialmente para aqueles que utilizam as mídias sociais sem entender como funcionam. São numerosos os riscos ligados a esse meio de comunicação: perda de sabedoria interior, superficialidade nas relações, emocionalismo, prevalência da opinião mais convincente em detrimento da verdadeira vontade.
O Papa recomenda que o Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais ajude aqueles que ocupam cargos de responsabilidade na Igreja a entender, a interpretar e a utilizar a "nova linguagem" dos meios de comunicação social em suas funções pastorais.
O que a Igreja Católica ensina a respeito das novas mídias?
A Igreja tem fornecido muitos ensinamentos a respeito da evangelização, da mídia e da nova mídia. Espera-se, neste sentido, um aggiornamento em breve.
O primeiro ensinamento chegou com o Apostolicam Actuositatem, decreto de 1965 do Concílio Vaticano II sobre o Apostolado dos Leigos, seguido pela Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. Estes dois documentos, promulgados pelo Papa Paulo VI, servem de base para entender a visão da Igreja a respeito da evangelização, em particular dos leigos. Mais tarde, surgiu a Carta Apostólica “O rápido desenvolvimento”, do Papa João Paulo II, em 2005, e a encíclica do Papa Bento XVI “Caritas in Veritate”, em 2009. Estes dois últimos documentos favorecem a compreensão dos ensinamentos da Igreja a respeito da comunicação e da mídia. Por fim, um documento recente, denominado “Novas tecnologias, novas relações” foi redigido pelo Papa Bento XVI a respeito das novas mídias e suas consequências nas relações humanas.
No Apostolicam Actuositatem, o Concílio encoraja os leigos a se tornarem mais diligentes e a fazerem o possível para explicar, defender e aplicar ativamente os princípios cristãos na busca de soluções para os problemas da nossa era, em linha com o pensamento da Igreja. O documento evidencia que todos os cristãos receberam a missão de defender a mensagem divina de salvação visando fazer com que todos os homens do mundo também a abracem. Para conseguir isto, os leigos devem recorrer ao seu próprio testemunho e proclamar o evangelho a todos os leigos que vivem à sua volta em sua vida quotidiana. Os documentos sublinham que a evangelização é um processo rico e pessoal e que evangelizar é dever de todo cristão. O Concílio esclarece que a evangelização não deve ser um trabalho individual, mas um trabalho de comunidades. Tudo deve servir como testemunho para proclamar o evangelho.
O Papa Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi, ensina que a evangelização é, de fato, uma graça e uma vocação própria da Igreja e representa sua identidade mais profunda. A Igreja existe para evangelizar. O Papa sublinha ainda que o importante é evangelizar a cultura e as culturas humanas, de maneira profunda e não superficial, tocando as raízes mais íntimas. Enfatiza, sobretudo, dois aspectos. Primeiro, a evangelização deve induzir uma mudança nas raízes de uma cultura, ali onde se formam os valores. Segundo, sustenta que o encontro face a face entre pessoas é de suma importância, como os do próprio Jesus com os vários personagens do evangelho, como a mulher samaritana.
No documento “O rápido desenvolvimento”, João Paulo II ensina que a Igreja encontra nos meios de comunicação uma preciosa ajuda para difundir o Evangelho e os valores religiosos, para promover o diálogo inter-religioso, a cooperação ecumênica e, também, para defender os sólidos princípios que são indispensáveis à construção de uma sociedade que respeita a dignidade da pessoa humana e atenta em relação ao bem comum. A Igreja vê a mídia como instrumento que deve ser utilizado para satisfazer a sua poliédrica missão no mundo que é ditada por Deus. O Papa acrescenta que é necessário fazer todo o possível para levar a cabo essa missão e observa que as novas mídias podem tornar mais eficazes as ligações de comunhão entre as várias comunidades eclesiásticas. Além disso, nota que as tecnologias modernas aumentam consideravelmente a velocidade, a quantidade e a acessibilidade da comunicação. Indica, também, algumas carências nos meios de comunicação, especialmente o fato de não favorecer a delicada troca que ocorre entre mentes e corações. Este tipo de troca deveria caracterizar qualquer comunicação que se coloque ao serviço da solidariedade e do amor.
O Papa Bento XVI, em Caritas in Veritate, afirma que os meios de comunicação e a tecnologia, de modo geral, expressam a tensão interior que leva a humanidade a superar gradualmente as limitações materiais e refletem um desejo de transcendência. A tecnologia é uma resposta ao comando de Deus de cultivar e proteger o jardim que Ele confiou à humanidade (Gen. 2,15). A Igreja não considera a tecnologia como algo bom ou mau, mas como expressão de uma qualidade humana doada por Deus e que pode ser utilizada para o bem da humanidade.
O Papa Bento XVI em “Novas tecnologias, novas relações” oferece algumas linhas guia para aqueles que utilizam as novas mídias, evidenciando diversas maneiras com que as mesmas influenciam as relações humanas. Inicia dizendo que a velocidade com a qual as tecnologias das novas mídias se desenvolvem e se difundem não deveriam nos surpreender, já que elas respondem a um desejo fundamental das pessoas de comunicar e entrar em contato umas com as outras. Ele espera que as novas mídias permitam não somente que as pessoas fiquem em contato, mas que também esses contatos facilitem formas de cooperação entre as pessoas provenientes de contextos geográficos e culturais diferentes. Por outro lado, isto permite também aprofundar o sentimento de sua humanidade comum.
No dia 29 de Junho de 2011, o Papa Bento XVI lançou um novo website utilizando um iPad, pronunciando as seguintes palavras:
“Queridos amigos, acabei de lançar o News.va. Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo! Com minhas orações e bênçãos, Bento XVI”. Isto levou milhares de usuários a seguir a conta Twitter do Vaticano em língua inglesa.
Ponto crítico
Além disso, o Papa Bento XVI aborda o tema do fosso digital (digital divide). Este termo expressa a ideia de que os novos meios de comunicação são facilmente acessíveis às classes média e alta da sociedade que, através deles, expressam seus valores, enquanto permanecem de difícil acessibilidade para as classes mais pobres. O Papa apoia o esforço no sentido de garantir que as vantagens oferecidas pelas novas mídias sejam colocadas à disposição de todos os seres humanos e comunidades, especialmente as mais necessitadas e vulneráveis. Lança uma advertência, afirmando que seria uma tragédia se o contínuo desenvolvimento das novas mídias servisse somente para aumentar ainda mais o fosso que separa os pobres dessas novas redes que se desenvolvem favorecendo a socialização e a informação da humanidade. Deste modo, enquanto a Igreja apoia a aproximação dos povos através das novas mídias, faz um apelo para que se forme um movimento adequado que represente os pobres e os marginalizados através destes novos meios de comunicação.
O Papa Bento XVI também chamou a atenção para o fato de que as relações não deveriam ser o único aspecto sobre o qual se concentrem as novas mídias. Ao contrário, a qualidade, em termos de conteúdos, reveste também grande importância. O pontífice encorajou as pessoas que operam no setor da nova mídia a promover uma cultura de respeito, diálogo e amizade, respeitando a dignidade da pessoa humana. O diálogo deveria acontecer no âmbito de uma sincera busca pela verdade. Com as novas mídias, os usuários podem ser facilmente induzidos a acreditar que eles sejam consumidores de um mercado de infinitas possibilidades onde a escolha torna-se um bem, a novidade seja mais importante do que a beleza e a experiência subjetiva substitua a busca da verdade. As novas mídias não devem afastar seus usuários de suas relações com a família, com os vizinhos e com membros da comunidade offline. O Papa lançou também a seguinte advertência: se o desejo de conectividade virtual se tornar excessivo, poderá, de fato, isolar os indivíduos excluindo-os da verdadeira interação social e, ao mesmo tempo, deteriorar os ritmos de repouso, silêncio e reflexão necessários para um desenvolvimento humano saudável. A Igreja defende a moderação em todos os âmbitos dessa interação com as novas mídias. O Papa sublinhou também o papel dos jovens na relação da Igreja com as novas mídias e com a evangelização que hoje é, provavelmente, mais importante do que nunca.
Que outras fontes cristãs utilizam as novas mídias?
As vantagens e os benefícios que as novas mídias trazem foram assimiladas pelo marketing secular, bem como por fontes católicas e protestantes. Muitas organizações da Igreja começaram a utilizar as novas mídias e tecnologias em ampla escala, permitindo vários níveis de sucesso.
E o que dizer a respeito dos Institutos Seculares em relação às novas mídias?
Os Institutos Seculares também se interessaram pelas novas mídias. Considerando que os membros dos Institutos Seculares vivem isolados ou em famílias, através das novas mídias o contato por email, skype, etc. entre os membros tornou-se possível. A CMIS (Conferência Mundial dos Institutos Seculares) mantém um website que coloca em contato diferentes Conferências de Institutos Seculares. É também possível na web contatos com outras Conferências de Institutos Seculares, dentro ou fora do país. Além disso, na Internet é possível encontrar matérias sobre a sensibilização para a vocação e documentos relativos à formação.
O que pensam os pesquisadores modernos a respeito das novas mídias?
Os pesquisadores James Katz e Ronald Rice conduziram amplas pesquisas sobre as consequências sociais relacionadas com o uso da internet. Em seu trabalho “Project Syntopia”, estes estudiosos disponibilizaram um relatório sobre a pesquisa. Em geral, o comportamento online das pessoas reflete-se no comportamento delas quando estão offline, isto é, não conectadas à Internet. Não existem provas científicas que possam ser citadas a favor do “paradoxo social” segundo o qual, o uso exagerado da Internet acarrete um aumento no isolamento social. Ao contrário, Katz e Rice concluem que o uso da Internet está associado a “um aumento da participação na comunidade e na política e a um aumento considerável da interação social quer online ou offline”. Suas conclusões foram confirmadas por numerosos outros estudos.
Segundo as provas coletadas por Erik Qualman durante 2009, as redes sociais registram não só o mais elevado número de novos membros, comparados com qualquer outro meio de comunicação do passado, mas também que a sua popularidade está em ascensão no tempo. Enquanto o rádio levou 38 anos para alcançar 50 milhões de usuários e a televisão 13 anos, o Facebook, famoso site rede social, alcançou 100 milhões de novos usuários em menos de nove meses, segundo as estimativas do pesquisador. Ele afirma também que se o Facebook fosse um país, seria o quarto maior do mundo. Wikipedia, a famosa enciclopédia online, em que os usuários criam e modificam os conteúdos, acolhe mais de 13 milhões de artigos, 78% dos quais escritos numa língua diferente do inglês.
Do ponto de vista do Marketing, os consumidores permanecem livres de decidir o tipo e a quantidade de publicidade que preferem. Podem escolher o programa televisivo que queiram assistir, as publicidades que desejem evitar e podem navegar em um website utilizando um programa que impeça que qualquer publicidade “pop-up” apareça na tela. Os consumidores estão cansados de receber mensagens publicitárias. Isso torna-se um grande desafio para aqueles que trabalham com marketing e que querem alcançar os consumidores de hoje. Segundo Qualman, somente 14% dos consumidores confiam nos anúncios publicitários, enquanto 76% afirma confiar nas recomendações de outros consumidores, tendo perdido a confiança em vendedores que afirmam que tal produto é “o melhor”. O que os consumidores querem é uma verdadeira interação com seus semelhantes. Em 2008, o “Barômetro da confiança” de Edelman evidenciou que a opinião mais confiável na Internet era, segundo os consumidores, a opinião de uma “pessoa como eu”.
Os jovens e a Internet
A Internet desempenha um papel importante na vida dos jovens. Foi demonstrado que 87% (21 milhões) dos jovens americanos se conecta à rede. Os torpedos ou SMS que servem para enviar mensagens instantaneamente, as chat rooms e os websites pessoais aumentam a velocidade da interação múltipla e simultânea mas apresentam também muitos desafios:
Impacto na esfera social. Comunicar através da Internet ajuda a ampliar a esfera social de uma pessoa. Hoje, a esfera social da pessoa não permanece limitada do ponto de vista geográfico já que existe uma presença “virtual” e não “física”. Os jovens que residam em lugares distantes, incapacitados ou obrigados a viver em casa por motivos de saúde, podem encontrar nas chats da Internet uma importante forma de comunicação.
Todavia, segundo alguns, tal circunstância poderia conduzir a um isolamento social. Além disso, o impacto nas relações com a família suscita preocupação. Emergem agora novas situações como o cyberbullismo e o stalking online, a cyber-pornografia, os fenômenos de hacking ou o flaming, uma mensagem ofensiva pública ou pessoal em que são usadas agressões verbais. Outros perigos podem também ser mencionados: demonstração aberta de violação de regras em grupo, fenômenos de racismo, sexismo e homofobia.
Impacto na esfera emotiva. A internet está sendo cada vez mais utilizada como fonte principal de busca de informações de todos os tipos: desde noções sobre formas de abuso até material de auto ajuda, permitindo que os jovens se expressem. Muitos jovens com pensamentos suicidas consultam sites de ajuda, grupos de suporte, sites sobre informação médica, buscando contatos com as organizações pertinentes. Esse suporte oferece uma interação fora do ambiente familiar às pessoas que enfrentam problemas emocionais.
Todavia, o outro lado da moeda é que muitos dos recursos que lidam com a esfera emocional podem também ser danosos. Por exemplo, existem muitas comunidades que promovem o direito de morrer (Hemlock Societies, em português Sociedade da Cicuta). Estão também presentes muitas informações sobre a construção de bombas caseiras, sobre como mutilar-se, como ser ativo sexualmente, como usar drogas e muitas outras informações sobre atividades ilícitas e ilegais.
A segurança informática
É uma questão importante para os jovens de hoje. É essencial que pais e filhos se conscientizem sobre os aspectos ligados à segurança informática, para não se tornarem inconscientemente vítimas de aliciamento ou de assédio sexual, por exemplo. Nas escolas, os professores poderiam integrar seus programas didáticos com informações a respeito de plágio, cópia e outras formas de comunicação não ética.
Aulas online e os cyber helpers (ajudantes ou tutores online)
São instrumentos importantes para os jovens de hoje. Trata-se de aulas que têm por finalidade comentar uma mensagem instantânea, um SMS ou um email. Ajudam a compreender uma mensagem ou a descobrir quem a enviou, fomenta a discussão sobre a etiqueta na rede (“netiqueta”), sobre o uso correto da internet e sobre a grande importância de que se reveste o cyberspace. A comunicação por Internet mudou muitos aspectos da vida dos jovens, por exemplo, na esfera privada, social, cultural, econômica e intelectual. Todavia, com preparação, orientação e supervisão adequadas, a Internet tem potencial para oferecer uma experiência positiva e contribuir para a promoção do crescimento pessoal.
Teologia ou tecnologia?
O Papa Bento XVI, ao dirigir-se aos membros da Comissão Teológica Internacional, em dezembro de 2010, afirmou que quem ama Deus é levado a se tornar, de certa forma, um teólogo. Todas as atividades em nossas vidas deveriam estar estreitamente ligada à nossa relação com Deus. O pontífice também afirmou que a teologia não é teologia se não estiver integrada na vida e não refletir os ensinamentos da Igreja no espaço e no tempo.
Jesus disse: Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres? Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal!” (Mateus 7: 22-23)
Poderíamos continuar a falar por horas sobre como a nova mídia pode ajudar a missão da Igreja, mas isto não produziria efeito se esse trabalho com a mídia não se basear na oração e na teologia. É uma questão de primazia da teologia sobre a tecnologia!
Como poderia a Igreja desenvolver um fundamento teológico?
O Santo Padre acredita que nossos professores são os Padres e os teólogos de toda a tradição cristã. Devemos começar a refletir sobre a evangelização dentro da Igreja, partindo dos profetas, passando por Cristo até os Santos. Devemos, então, refletir sobre os padres, os doutores e as novas personalidades midiáticas da Igreja. Refiro-me, em particular, a São Paulo Apóstolo, a São Francisco de Sales, Bispo e doutor da Igreja (1567-1622), ao beato Tiago Alberione, fundador da Família Paulina (1884-1971), ao arcebispo Dio Fulton J. Sheen, personalidade midiática, premiado por sua atividade na televisão (1895-1979) e a São Daniel Comboni, cujas palavras sobre o trabalho missionário ressoam neste mundo da nova mídia.
Portanto, de onde começamos?
A nova mídia criou um novo ambiente para o pensamento humano, a aprendizagem e a comunicação. Muitos consideram este fenômeno como algo mais do que uma simples revolução midiática. Trata-se de uma revolução da “língua”. As novas tecnologias da mídia mudaram radicalmente a maneira como os seres humanos pensam e se expressam. Tentei apresentar o panorama e a linguagem em que as tecnologias emergentes da nova mídia podem ser consideradas, avaliadas e, se for o caso, encorajadas e utilizadas na Igreja. Coletei o material para a minha apresentação a partir de documentos da Igreja e da tese de Santana Angela. A Igreja dispõe de “novas linguagens” e deve considerar que tipo de “nova língua” é positiva para si.
Referências bibliográficas:
- Santana Angela M., New Media, New Evangelization: The Unique Benefits of New Media and Why the Catholic Church Should Engage Them. (Nova mídia, nova evangelização: as vantagens ímpares da nova mídia e porque a Igreja Católica deve usá-la) St. Mary’s University San Antonio, Texas (Universidade de St. Mary, San Antonio, Texas).
- Enciclica Caritas in Veritate do Sumo Pontífice Bento XVI aos bispos, aos presbíteros e aos diáconos, às pessoas consagradas, aos fieis leigos e a todos os homens de boa vontade sobre o desenvolvimento humano integral.
- Decreto sobre o Apostolado dos Leigos. Apostolicam Actuositatem. Solenemente promulgado por sua Santidade Papa Paulo VI, a 18 de novembro de 1965.
Carta Apostólica “O rápido desenvolvimento”, do Santo Padre João Paulo II, aos responsáveis das comunicações sociais. - Mensagem do Santo Padre Bento XVI na 43ª Jornada Mundial das Comunicações Sociais. “Novas tecnologias, novas relações. Promover uma cultura de respeito, de diálogo, de amizade”. [Domingo, 24 de Maio de 2009]
- James Katz e Ronald Rice. Project Syntopia: Social consequences of Internet Use. (Projeto Syntopia: as consequências sociais do uso de Internet).
COMO MUDA A VOCAÇÃO QUANDO O MUNDO E NÓS MUDAMOS
Piera Grignolo
O tema que me foi confiado é muito sugestivo e rico de considerações. Parece-me que o termo “mudança” esteja na base do debate sobre a realidade sociocultural em que vivemos e da nossa realidade pessoal: não me parece que diga respeito à nossa VOCAÇÃO laical.
O modo de viver e de atualizar os carismas muda, mas não muda a substância, isto é, uma vida doada a Deus para os irmãos na realidade temporal, ou seja, no mundo.
Não se trata de mudar a mentalidade, mas de adquirir “uma mentalidade de mudança, ou viajante”, (E. Leed – A mente do viajante, Bolonha 92) isto é, a capacidade de amadurecer um pensamento vagante, como costuma acontecer numa época de mobilidade e de mudança, onde tanto o que viaja como o que fica no seu próprio lugar vive, seja como for, como “homo migrans”.
Ocorre repensar uma nova forma educativa inspirada na superação do subjetivismo moderno – o EU no centro – para abrir-nos à insígnia do rosto do outro: eis a mudança, abertura a um humanismo planetário, de convivência humana e intercultural.
Esta é a novidade do terceiro milênio: redescobrir a realidade relacional. Nós, ocidentais, viemos de uma tradição filosófica e pedagógica muito bem radicada no princípio do “conheça a si mesmo”, que subentende a ideia de que o outro seja igual a nós, e, se não for é um “bárbaro, infiel, de qualquer forma inferior”. Mas o que acontece quando o outro é diferente e eu estou ciente de que não posso mais considerá-lo um bárbaro ou um pagão?
O filósofo Italo Mancini, em “Tornino i Volti” (Voltem as Faces), escreve “... no terceiro milênio o termo incluindo tudo deverá se tornar o outro e a sua face, biblicamente o próximo, e à sua volta se estenderá uma cultura de paz”.
Ocorre redescobrir o senso do acolhimento e da solidariedade, educar-nos à reciprocidade que nos torna, progressivamente, capazes de ouvir, dialogar e silenciar na solidão habitada pela presença do outro.
É uma mudança radical que é solicitada a todos, mas, diria, de modo especial, a nós, leigos, que somos chamados por vocação a compartilhar a vida quotidiana daqueles que vivem em nossas cidades e em nossos territórios.
De fato, hoje existe o território do isolamento, do frio, desolado e sem memória ou memórias, que através da nossa presença deve ser transformado em território vívido identificado, repleto de futuro e de profecia, (que é o) território do homem e da mulher, das relações significativas, onde o “eu” é redefinido por “nós”, onde a terra habitada se torna espaço afetivo e relacional, onde juntos construímos o sentido da vida e onde cada pessoa possa encontrar pão e paz.
É nesta perspectiva que aprendemos a PARTILHAR. A partilha determina a extensão da relação: não é possível haver uma relação significativa sem partilha.
A partilha envolve os aspectos mais profundos da pessoa: quem partilha participa da vida do outro e faz o outro participar da sua, numa relação de igualdade em que cada um divide com o outro as próprias energias, as capacidades, os limites, as fraquezas, a alegria e a dor.
Não é uma relação em que “eu dou, você pega”, mas uma troca entre várias pessoas. “Entre na minha vida, na minha realidade” aceitando mudar no concreto e no quotidiano. É buscar, com os outros, a construção de algo a compartilhar, algo que dê sentido à minha vida e à vida dos outros, promovendo o crescimento das pessoas através da mudança das estruturas, para torná-las mais humanas, ao serviço do outro.
Não é preciso pensar em realizar grandes coisas, basta estar atentos às necessidades reais das pessoas que conosco percorrem uma parte da história.
Diria que a novidade de hoje consiste em viver uma presença diferente e nova no nosso ambiente de vida, tendo como objetivo “viver buscando o estilo evangélico, com a vida inspirada por Deus ao homem contemporâneo”.
Isto requer uma atenção contínua em relação às mudanças sócio-culturais em que vivemos, também em relação às mudanças que acontecem dentro de nós, para depois vivermos, como leigos uma novidade de vida. A nossa VOCAÇÃO concretiza-se na realização do ENCONTRO com o outro, na relação que tem por base a nossa presença.
Não nos é solicitado somente FAZER, ORGANIZAR, mas sobretudo SER fiel na mudança com as novas modalidades de presença.
É verdade que cada um de nós muda: penso no entusiasmo e nas motivações iniciais com que mergulhamos no acolhimento do projeto que Deus nos destinou: ser sal, fermento, luz no quotidiano e foi para cada um de nós o desejo profundo que nos faz superar as dificuldades.
Gradualmente, os anos nos fatigaram de uma presença aparentemente anônima e sem reconhecimento, da solidão muitas vezes mal compreendida, da falta de assistência a enfermos, da incerteza de uma velhice assistida.....
Li com profundo interesse e estupor um artigo publicado na revista “Crescer hoje”, da teóloga Lilia Sebastiani. O título era: “Para uma espiritualidade do consumo e da satisfação”. Nunca tinha ouvido falar de Espiritualidade do consumo, mas de consumismo, logicamente no sentido negativo.
“ …A fuga do “espírito belo” fora da civilização comprometida com o dinheiro seria hoje, realmente, uma escolha espiritual? Mesmo supondo que esse espírito encontre a sua felicidade e se realize na forma de vida extra econômica, que escolhesse para si, a gente se pergunta: uma vida extra econômica não seria também, de alguma forma, extra social? E pode haver uma escolha autenticamente espiritual sem solidariedade?
Talvez hoje o espírito belo seja, sobretudo, aquele que aceita o convite das coisas do mundo: que aceita “sujar as mãos” (como se dizia até algum tempo atrás), mas a perspectiva subentendida na expressão já não nos parece satisfatória, até mesmo porque contém sempre um julgamento implícito negativo (mundo = sujo).
A escolha não é a de sujar as mãos ou o coração, mas purificar o mundo até torná-lo capaz de “transparência”, até de torná-lo legível no projeto de Deus.
Ocorre, então, que se deveria reconciliar também com os bens materiais, com as coisas: não para se deixar levar por elas, não para se identificar com o mundo, não para perder a própria e inata “verticalidade”, mas para tornar a lógica da Redenção cada vez mais reconhecível e operante em todos os âmbitos a vida terrena”.
Esta me parece uma leitura muito significativa para nós, membros dos Institutos Seculares, uma proposta de reflexão e de abertura nova, que não podemos deixar de considerar se quisermos realmente buscar um modo criativo, mas fiel, de estar presentes na história, colocando no centro a pessoa e não as coisas, usando os bens sem depender ou ser consumidos por eles.
É um caminho de busca.
COMO VIVER A VOCAÇÃO HOJE - NA PERSPECTIVA EDUCATIVA
Há de se permanecer em estado de conversão contínua: uma nova mentalidade. Não desistir nunca, mas viver com as antenas ligadas para captar novas modalidades de presença que sejam idôneas à nossa idade e condição. Vale dizer:
1) Pensar numa Igreja pobre e humilde, que confie na força do Evangelho: “A Igreja é o mundo convertido” (Moioli 1990). Nós somos a igreja, nós somos o mundo, sempre.
- Não à fuga do mundo.
- Não à conquista do mundo.
- Sim à conversão do mundo a partir de nós: viver o testemunho verdadeiro: possível: o nosso estilo de vida, a nossa humanidade, suscitando um questionamento naqueles que nos encontram.
- Com poucos meios: usar os meios do mundo na medida em que forem úteis, mas abandoná-los quando eles gerarem dúvidas e questionamentos sobre a sinceridade do testemunho (Dianich).
2) Ganhar “a sabedoria”
- Habitar a nossa sensibilidade e evangelizá-la “no sentido espiritual, para que receba a Graça vivificante do Espírito”.
- Os sentidos nos permitem comunicar com o exterior nas duas direções; acolher o dom de DEUS e doá-lo aos outros.
- Cultivar a relação com o Único necessário, na dimensão contemplativa e na de comunhão com Jesus Cristo, como fundamento do ser e estar no mundo sem perder o “sabor”, como fundamento para a aceitação do “risco da partilha” (Moioli 91).
Habitar a nossa humanidade e permanecer em contato profundo com a humanidade de Cristo nos transforma interiormente, nos torna sábios e, por isso, prudentes, mulheres e homens capazes de “tornar a vida eficaz” (GS 42), a fé e a caridade que nos deriva da aceitação do evangelho.
Cada um de nós fará próprio o convite de Jesus a Maria Madalena (João 20): “Vai aos meus irmãos”, vive no meio deles e com o teu testemunho anuncia o Deus que se revelou em Jesus Cristo.
ELEMENTOS PARA UMA SÍNTESE DO CONGRESSO
Giorgio Mario Mazzola
Encerramos o nosso Congresso recolhendo algumas opiniões estimulantes que emergiram no curso destas jornadas e acolhendo algumas sugestões oferecidas.
Vamos começar por Assis, por São Francisco.
Lembro-me que durante um encontro com a CMIS, o então Secretário da Congregação, Mons. Gardin, ouvindo e procurando entender o significado profundo da vocação dos Institutos seculares, concluía sua fala fazendo a seguinte analogia: “São Francisco, quando quis instituir uma ordem, quis que fosse a Ordem dos Frades Menores, isto é, pequenos”. Pequenos, mas necessários à renovação da Igreja, que naquele tempo enfrentava alguns desvios, visando trazê-la de volta à sua única missão, que é a de ser testemunho doa mor de Deus.
Após alguns séculos, parece que estamos novamente enfrentando uma crise e a Igreja defrontando um novo desvio – e não me refiro simplesmente ao que lemos nas primeiras páginas dos jornais, que de certa forma enuncia um sintoma de desconforto mais profundo, uma certa confusão a respeito da qual o Papa referiu em diversas ocasiões. A Igreja, eu dizia, deve eliminar algumas tantas superestruturas que hoje representam um peso inútil e, em alguns casos, até prejudicial. Precisa voltar a manter um contato vivo, e portanto autenticamente humano, com o Evangelho, no qual deve depositar toda a sua confiança. Se pensarmos bem e observarmos à nossa volta, é fácil perceber que se trata de uma enorme obra de renovação. Nesta renovação, os institutos seculares devem fazer a sua parte. Pequenos, mas necessários.
Que parte é essa que não é lícito abandonar? Há que se refletir bem, porque não podemos dizer que somos fieis nessa tarefa somente pelo fato de estarmos aqui.
Ser fieis - devemos lembrar - para nós, significa ser fieis à consagração e à secularidade, vale dizer, a uma plena consagração e a uma plena secularidade.
Comecemos com as palavras do Papa. Mais uma vez recolhemos o exemplo de uma palavra do alto Magistério, ao mesmo tempo densa e exigente.
O Concílio nos faz notar que a relação entre a Igreja e o mundo deve ser vivida em nome da reciprocidade; por isso, não somente a Igreja dá ao mundo, contribuindo para tornar mais humana a família dos homens e a sua história, mas também o mundo dá à Igreja, para que ela possa compreender melhor a si mesma e viver de modo completo a sua missão. (cfr. Gaudium et Spes, 40-45)
Reli os números de Gaudium et Spes citados na carta do Papa e devo dizer que a expressão da carta que nos foi endereçada parece-me ainda mais eficaz. De qualquer forma, nesta troca entre Igreja e mundo, nós devemos participar em ambos os sentidos. Nós estamos em ambos os lados. Devemos sentir esta reciprocidade em nossas vidas, cuidando, embora, de entendê-la bem: para nós, não se trata de uma atuação de mensageiros, como se tivéssemos que tirar de uma parte e levar para a outra. Essa reciprocidade deve ser vivida em nossa pele, porque estamos neste mundo. A nossa vida, já que estamos no mundo, é continuamente alcançada pelos dois sentidos assinalados.
E assim pediu-nos o Papa:
É preciso que vocês sejam capazes de vos interrogar a respeito das complexidades que o mundo hoje atravessa, que permaneçam abertos às solicitações provenientes das relações com os irmãos que encontram em vossos caminhos, que vos empenhem num discernimento da história diante da Palavra de Vida. Estejam disponíveis para construir, junto com todos aqueles que buscam a verdade, caminhos que levem ao bem comum, sem soluções pré concebidas e sem medo das perguntas sem respostas.
Antes de tirar alguma ilação destas palavras, quero sublinhar que o ensinamento do magistério, especialmente o dos Papas, sobre os institutos seculares, tem grande valor e está repleto de conteúdo. É como se a Igreja continuasse a repetir, com força: Veja, esta é uma vocação importante! É importante”! Mas nós... nós não acreditamos de verdade. Falta-nos a coragem de entregar (uso um termo importante do discurso de P. Gamberini) todo o significado da nossa vida à existência comum. Buscamos atalhos para torna-la importante de outra forma.
O Papa diz: “Sem medo das perguntas sem respostas”. É preciso ter coragem para dizer isto! Como seria bom se os nossos Institutos se apresentassem aos jovens deste modo: em primeiro lugar nós não estamos aqui para fornecer respostas (quem sabe pré formuladas) mas para receber perguntas. Precisamos de perguntas importantes porque necessitamos continuamente deste exercício. Sobretudo precisamos das perguntas que chegam do mundo que não crê.
O evangelho é feito pera ser entendido por todos os homens de boa vontade. Se isto não acontecer, devemos nos interrogar sobre a maneira como o apresentamos. Temos de saber entrar de vez em quando no coração dos que não creem – e não seria difícil se tivéssemos a coragem de ouvir o lado agnóstico que este presente em cada um de nós – para ver quanto somos ridículos, às vezes, e bobos com nossas liturgias falsificadas, com nossas sentenças moralistas, com nossas iniciativas ornamentais, para não falar sobre quando, até mesmo, contradizemos o evangelho. O Papa pediu-nos que abraçássemos com caridade as feridas do mundo e da Igreja, porque essas feridas são nossas.
P. Gamberini mostrou-nos que em Jesus, o santo, o puro, a vida, encontraram o pecado, o impuro, a morte e, somente assim, a vida pôde fluir, escorrer. A nossa salvação originou-se exatamente assim: quando o sacro alcançou o profano. É preciso refletir sobre isso. Não quero acrescentar nada mais. Mas devemos refletir.
Quando dizemos que a nossa pobreza, castidade e obediência devem ser vividas de maneira adequada às exigências da secularidade, quero dizer que se deve acolher a intencionalidade de Deus, e o critério com que aquelas virtudes devem ser vividas e verificadas é este: porque Ele veio para que todos “tenham vida, e a tenham em abundância” (João 10:10b).
Falamos sobre linguagem: as novas mídias estão acelerando a evidência de que a linguagem eclesiástica corre o risco de parecer vazia, quando nela não correr mais sangue (em termos evangélicos poderemos dizer sangue tem significado de vida plena). Jesus falava com autoridade porque era o Verbo feito carne, n’Ele a Palavra e Vida coincidiam. Interessante a história da professora Gerl Falkowitz a propósito daquela iniciativa de oração dirigida aos ateus: ela dizia que quando acrescentava palavras próprias ao evangelho, os não crentes ficavam menos interessados; quando liam o evangelho diretamente, os ateus sentiam-se questionados.
Existe, de fato, uma certa linguagem – e uma certa forma de pensar da Igreja – que está confundindo as pessoas e que deixou de surtir efeito, pois não consegue mais transmitir vida, porque está afastada da vida.
Na apresentação de Ivan Netto, uma expressão sintética a respeito de uma pesquisa sobre os jovens me tocou muito: “eles não estão dispostos a ouvir mensagens que vêm do alto, mas estão dispostos a ouvir uma pessoa como eu”. Jesus encontrou os homens e tornou-se um deles. Alguém na sala disse: “Madeleine Delbrel acreditava não ter feito nada além de amar as pessoas com quem convivia”.
Piera Grignolo, em sua palestra, disse que não é tão habitual encontrar o outro. Deve-se observar o outro, que é cada vez mais outro. Não se deve permanecer à sua frente, mas ao seu lado. Isto não é fácil. No debate que seguiu após a sua palestra, P. Gamberini disse que a primeira forma de exorcismo é a escuta, isto é, a capacidade de dar espaço ao outro, para que o outro possa expressar sua experiência.
Espaço: esta é uma palavra que nos deve apaixonar. Nesse encontro com o outro, devemos aprender a criar espaço, ao invés de encher o espaço, que é o que temos o costume de fazer. Sabendo que, segundo o mistério cristão, no momento em que, neste encontro, alguém tiver que pagar e morrer – esse alguém deve, de fato, ceder espaço – aquele alguém, somos nós.
A Igreja deve aprender a não dizer sempre o máximo possível, mas a dizer o mínimo necessário, para que fique claro que “o poder além do normal seja o de Deus e não o de nós mesmos” (2 Cor 4,7). Nós devemos parar de nos comportar como donos do Espírito. Devemos, sim, ter a consciência de que Deus escreve a sua história de salvação das tramas dos eventos da nossa história (palavras do Papa). É a sua história de salvação, não a nossa. O mundo não precisa de intermediários do Espírito que usam a fé como um manual de respostas pré formuladas, (dizia o Prefeito que corríamos o risco de morrer debaixo do peso das nossas obras), mas de caçadores da verdade – cito mais uma vez as palavras do Papa:
A medida da profundidade da nossa vida espiritual não está nas muitas atividades (...) mas sim na capacidade de buscar Deus no coração de cada acontecimento. (...) Somente pela graça, que é dádiva do Espírito, vocês poderão avistar nos caminhos muitas vezes tortuosos dos fatos humanos, a orientação para a plenitude da vida superabundante.
A Igreja deve também aprender a ser serva inútil – não estou dizendo um disparate, são palavras de Jesus. Nós queremos grande bem à Igreja, por isso a queremos bela e fiel ao Evangelho.
A Professora Gerl Falkowitz, em sua fala, quis nos lembrar, caso tivéssemos esquecido, que é necessário pensar na fé; de fato, falta em nossos ambientes uma reflexão contínua e atualizada a esse respeito, com o risco de que tudo seja deixado à emotividade. Vamos ver se na Assembleia dos próximos dias saberemos indicar algum caminho. A professora nos ajudou a compreender a necessidade de um olhar antropológico profundo, que coloque o mistério cristão no âmago da questão fundamental da vida: como usarei esta vida? Devo guardá-la para mim? Como posso sair do medo de perdê-la? São questões que ... nos colocam justamente ao lado do outro. Por isso, eu disse após a sua palestra, devemos nos perguntar de modo aberto: qual é a tarefa do cristão no mundo? Se colocássemos a vida no centro, deveríamos concluir que nós estamos no mundo não para fazer nossas coisas, as presumidas coisas cristãs, mas para aceitar até o fim esta tensão que a vida de cada homem e de cada mulher acarreta, e tentando, dentro da mesma, ser testemunhas de um significado que contemplamos. O mundo necessita de pessoas que enfrentem essas questões e que, sem simulações, tragam soluções para as mesmas.
O único erro na vida é não responder à chamada para a santificação: assim dizia, de modo muito significativo e com grande ênfase, Monsenhor Gérald Lacroix, recordando a chamada à santificação. Entramos em um instituto secular exatamente por isso. Mas não se trata de uma dádiva dirigida a nós, mas a todos e o apelo à santificação precisa ser traduzido concretamente. Nós devemos ajudar o empregado, o professor, a mãe, o pai, o carpinteiro, o prefeito, o doente... e também o artista, o atleta, a responder: “Como posso santificar-me sendo empregado, professor, mãe...” De fato, existe um novo modelo de santo que deve ser preparado, para que o cristão compreenda que é possível se tornar santo sem tomar distância do que é impuro, sem se afastar do profano, mas estando presente, e sendo santo entre a gente. Jesus obteve a vida quando entrou em contato com o impuro, com o que estava turbado.
A Igreja, no seu conjunto, deve apoiar este caminho de santificação, porque é esse o nosso modo de “fazer funcionar” a Igreja. Pierre Langeron nos lembrou, com precisão, toda a fatiga de um caminho de reapropriação do papel dos leigos na Igreja. Nesse caminho, não deve encontrar espaço uma “reivindicação” do papel dos leigos, como se estes pedissem concessões ou delegações. Essa época deve terminar, porque na Igreja devemos simplesmente nos conscientizar de que o povo de Deus é feito de leigos e ao serviço deste povo estão os ministérios, absolutamente necessários, da Palavra, dos sacramentos, do discernimento, da oração incessante. Por esse motivo, eu não farei, na Igreja, um “ano sobre o laicato”, porque seria como colocar os leigos numa categoria: o laicato, de fato, é fundamentalmente, o povo de Deus; se a Igreja não se ocupasse disso, do que se ocuparia? De outra coisa, sim, é possível, mas com o risco de trair o evangelho de hoje. Está diante dos nossos olhos.
O Cardial Prefeito nos recordou o grandíssimo valor da comunhão e da necessidade de respirar com toda a Igreja. Não devemos olhar para nós mesmos, repetiu, não devemos restringir o nosso olhar para nós mesmos, mas abrir-nos em comunhão. Tocou-nos profundamente o que nos disse o Prefeito: a origem de tanta deslealdade na vida consagrada nasce da pouca comunhão, da pouca abertura. Eu gostaria então de lançar um pedido, que, diante destas palavras, torna-se um apelo: vivemos belos dias de comunhão aqui em Assis, não vamos deixar que estes momentos permaneçam como episódios isolados, vamos procurar viver juntos o caminho da Conferência mundial e qualquer outra ocasião de compartilhamento entre nós. Não vamos nos fechar, para não correr o risco de sermos desleais.
Isto requer uma vigilância particular para que o vosso estilo de vida manifestem a riqueza, a beleza e a radicalidade dos conselhos evangélicos. Mais uma vez, estas são palavras do Papa que nos remetem à necessidade de transparência e, como disse no início, da lealdade em relação à plena consagração e plena secularidade. Se fosse um degrau a menos, não bastaria. E se fosse um degrau a menos, nós estaríamos perdendo o nosso tempo. O mundo necessita da dedicação de toda a nossa vida.
Concluímos assim o nosso Congresso. Recebemos preciosas indicações para o trabalho da Assembleia que se abrirá daqui a pouco, mas, sobretudo, para ajudar-nos a viver e mostrar a dádiva extraordinária: a vida.
ESTATÍSTICAS SOBRE OS INSTITUTOS SECULARES
INSTITUTOS SECULARES
- 214 reconhecido
- 200 dependente CIVCSVA
- 4 dependente da Congregação para as Igrejas Orientais
NÚMEROS TOTAIS
Direito Pontifício | Direito diocesano | Total | Membros | |
---|---|---|---|---|
Feminino | 61 | 119 | 180 | 26580 (82,16%) |
Homens leigos | 2 | 6 | 8 | 569 (1,76 %) |
Sacerdotales | 8 | 2 | 10 | 3987 (12,32 %) |
Com filiais | 2 | 6 | 8 | 1216 (3,76 %) |
Total | 73 | 137 | 210 | 32352 (100 %) |
Legend:
|
---|
TIPOS DE MEMBROS
Feminino | Homens leigos | Sacerdotes | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Incorporação final. | En formación | Incorporação final. | Em formação | Incorporação final. | Em formação | |
25682 | 1713 (6,67 %) | 642 | 134 (20,87 %) | 3538 | 643 (18,17 %) | 32352 |
27395 | 776 | 4181 |
NÚMERO DE MEMBROS PELO INSTITUTO
Número de membros | Número de institutos |
---|---|
- 10 | 8 |
11 a 20 | 16 |
21 a 50 | 52 |
51 a 100 | 51 |
101 a 200 | 50 |
201 a 500 | 21 |
501 a 1000 | 6 |
1001 a 2000 | 4 |
2001 - | 2 |
